Pássaros de seda Rosa Lobato Faria VIII
Coisas Lidas
Era um cego que tinha uma viola de doze cordas, disse um dia o tio zebra.
Tocava-a nas feiras e nos balhos, todo o povo gostava de repenicar ao som das suas modas. Andava cego pelas terras alem com a sua viola, o seu cajado e o seu cão, quando um dia adregou de topar com um tartamudo que lhe pediu que tocasse, por muitos gestos e sinais. O cego tocou, o mundo que também era surdo nada ouviu.
Por ali passava um coxo com fama de santo, apoiado no seu pupilo que era um menino iluminado, que lhe servia de guia e lhe traduzia os pensamentos, já que o santo falava por charadas e ninguém, a não ser o menino, o entendia. Corda partida, catarata caída, boca florida, cera derretida.
O cego não percebeu patavina, o surdo ainda menos, o menino vá de explicar que por cada corda da viola que se partisse, menos cego ficava o cego, menos mudo ficava o mudo e menos surdo o surdo.
E dai? Disse o cego. Dai que a vida é feita de dozes cordas como a tua viola, e por cada uma q eu se usa e parte, melhor se vê, melhor se ouve e melhor se fala.
E mal dos manetas que não a tanjam com os dentes, disse o santo,
E isto o que seja, perguntou o cego.
Isto quer dizer que quem não tiver unhas para usar e partir todas as cordas ou na falta de unhas não use, para tange-las, todo o seu engenho, não terá vivido e morrera cego, surdo e mudo.
Quer dizer que quando partirem todas as doze cordas eu serei capaz de ver e o surdo-mudo de ouvir e falar?
O santo não respondeu. Não sei, disse o menino. Mas segue tangendo a tua viola, deixa que a corda se parta de forma natural, umas na tristeza e outras na alegria, uma na fome e outras na fartura, umas no bulício, outras na solidão. E quem viver vera e quem tanger cantará. E abalaram os dois
O cego e o surdo-mudo juntaram-se na sua peregrinação pelo mundo, as cordas da viola lá se foram partindo uma a uma, eles foram ficando mais sábios e mais percebe dores da vida e dos outros e da obra de Deus e um dia, quando á viola restava uma corda só, vieram num fim de uma feira, uns bêbados que lha partiram e ao verem aqueles três, cego, surdo e cão sarnento, os encheram de pau e os mataram. Agora compreendo, disse o mudo, já com a boca da alma sou capaz de falar, já oiço o coração dos outros a bater e tu? Eu vejo tudo, disse o cego. Mas vejo mais que tudo os meus erros e vejo que a vida é cheia deles e vejo que para emenda-los é tarde demais
Não será tarde de mais, disse o mudo. Porque os outros aprenderão a tanger as suas violas, a usar a vista, o ouvido, a voz, as unhas e os dentes que o senhor lhes deu, em vez de ficarem a tocar para os outros bailarem, de mão estendida, á espera duma esmola.