O PEDOFILO QUE QUERIA MUDAR DE VIDA
Coisas lidas
Adoro brincar aos médicos já não tenho idade para isso, eu sei. Fiz quarenta e seis anos, e não sou médico. Sou advogado. Também por isso, conheço bem a gravidade da minha situação, sob um ponto de vista jurídico. É que eu não acho piada brincar aos médicos com pessoas da minha idade. Seria ridículo dois maduros fazerem operações ao apêndice. O meu forte – a minha fraqueza – é as crianças. Todos os dias pela manhã pespego-me á porta de uma escola primária, ou de um ciclo preparatório, com a minha bata e o estetoscópio, e lá fico, á espera da vítima. Adivinharam: sou pedófilo a culpa de ter chegado a esta situação, penso muitas vezes, é da Eugénia! Os momentos gloriosos que passamos por trás da garagem do teu pai. Não teríamos mais de dez anos. Brincávamos aos médicos, ás voltas com o estetoscópio o termómetro, as seringas (...) durante toda a minha vida de adulto, apesar das sete namoradas e dos dois casamentos, nunca mais senti a emoção daqueles momentos. A imagem da Eugénia, a rebolar-se de dores fingidas, persegue-me.
Mas lá conseguia levar sem grandes sobressaltos o meu dia-a-dia de pedófilo, ate que o tema saltou para as aberturas dos telejornais. Eram as redes organizadas na Bélgica e em França, a Margarida Marante a indignar-se pelo termo”pedofilia” ainda não estar inscrito no código penal. Comecei a sentir-me perseguido. Então era verdade. A pedofilia era uma coisa horrível vinha em todos os jornais: era uma perversão, uma doença um crime. De todos os pervertidos, explicavam os especialistas (...) o pedófilo era o mais hediondo, pois se aproveitava de seres inocentes e indefesos para consumar os seus repugnantes propósitos (...)
(...) o primeiro que encontrei foi o Sedas Feitichista de longa data, andava, como todas as noites a esgravatar nos caixotes de lixo” junta te a nós”, propôs quando lhe contei as minhas preocupações. “ Ao menos não incomodamos ninguém. Não me lembro de ouvir um soutien queixar-se, nem umas cuecas gritarem por socorro”.
Mas ao vê-lo assim, argumentar equilibrado nuns velhos sapatos de salto alto, compreendi a ilegítima intromissão na vida alheia que as paixões implicavam. Quem gostaria de ver as próprias peúgas rotas na cama com um desconhecido?
A seguir encontrei – me com o Calvário, que é masoquista, e com o Clemente, que se gaba de ser sádico.” Eu não faço mal a ninguém”, choramingou o Calvário. E o Clemente acrescentou “eu só faço mal a quem quer”. Tinha lógica. Mas bastou olhar para a prosápia de um e para o vexamento de outro para perceber como foram os respectivos complexo e remorso que os fizeram trocar os papéis. Pelo que quanto mais o sádico se fazia de masoquista e o masoquista de sádico mais ambos se sentiam desgraçados e uns abortos da natureza.
Idêntica sensação de fraude experimentei com as minhas amigas lésbicas Romana e Barbara. O que tornava a sua actividade não uma doença mas um estilo de vida era
O facto de, ao contrário do que sucede no caso dos pedófilos, serem ambas maiores e vacinadas, explicaram. A verdade, pensei eu, é que confundem a conclusão com a permissa. Se admitirmos a hipótese de as suas actividades serem uma doença mental, então nenhuma tem idoneidade para decidir pratica-las. De quem é a culpa, quando um inimputável?
Esta conclusão é aliás válida para os heterossexuais. Foi isso que expliquei a um casal amigo, Prócopio e Jarreta, quando me vieram com a ladainha do casamento e da reprodução. Com que direitos dá vida a quem não a pediu? Não será essa a forma suprema de abuso?
Já quase a desesperar, imaginei que a solução estivesse no radicalismo. Marquei encontro no jardim zoológico com o Zé Coelho, um colega advogado que há alguns anos, após um tratamento de psicanálise, descobriu que a sua vocação era a Zoofilia.
“Não se atenta contra a dignidade de ninguém, é como fazer experiências com ratos”, disse ele, junto á jaula do macaco. Mas o olhar malandro que lançou á gaiola da avestruz. Lembrou-me a frase de alguém: os animais, precisamente porque estão á nossa mercê, são o grande teste moral da humanidade.
Vinha-me embora quando me cruzei, á porta da casa de banho, com a minha amiga São (diminutivo de Excreção), que é coprofélica. Ora aqui está uma rapariga com um hobby inofensivo, pensei. Mas logo me desiludi. Com que direito alguém se serve de algo que outrem tão convictamente rejeitou?
Ultima tentativa: o meu copincha Epitáfio Paz. Uma pessoa adorável, não obstante ter uma opção sexual algo”sui generis”, é necrófilo. Vá lá! Não comecem já a estigmatizá-lo. Não se deve ter preconceitos. É preciso ser tolerante. Numa pessoa deve interessar-nos o que ela é, não com quem se deita á noite.
Epitáfio, pelo raiar da manhã, ainda todo despenteado á porta do cemitério, vinha precisamente de uma daquelas noites mais belas que os nossos dias”tenho a solução para o teu caso”, disse ele, com a voz cavernosa de quem acaba de se levantar” junta-te á malta. É um descanso. Faças o que fizeres a vitima nunca poderá ficar pior do que já está”. Tinha razão. Pelo menos de um ponto de vista material. No plano espiritual, as coisas complicavam-se. Que acontecerá á alma quando, no momento de se libertar do corpo, for surpreendida por tão ignóbil profanação? Com que cara comparece uma pessoa no juízo final enquanto o seu cadáver leva uma vida devassa?
Achei melhor voltar á minha vidinha na escola primaria. Mas, mal lá cheguei, deparei com algo estranho. Eh lá! Concorrência? Dentro de um carro, de bibe e estetoscópio ao pescoço estava uma mulher gorda mais ou menos da minha idade. Aproximei me. Tive um baque. Era ela! Eugénia? Tu também depois de todos estes anos?”ilusão! era apenas um policia, desajeitadamente disfarçado de pedófilo, que começou aos gritos:
«Mãos em cima do capot. Foste apanhado, tarado de merda! Estás preso!»
Paulo Moura