Assista a este vídeo em uma nova janelaXutos & Pontapes - Homem do Leme
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Coisas Declamadas
Palavras, atirei-as
como quem joga pedras, lança flores.
Abriram fendas nas areias,
suscitaram carícias e furores.
Sobre mim recaíram
pesada de multíplices sentidos. Tenho os lábios que um dia as proferiram
e os dedos que as gravaram — já feridos.
Tintas de sangue as restituo aos ventos,
prestidigitador que sou de sons, palavras.
Dá-lhes novos alentos,
fogo sonoro que em mim lavras!
Errantes lá por solidões imensas,
com asas no seu peso, à recaída,
me tragam, ágeis, densas,
a resposta final que me é devida.
(José Régio)
Muito obrigada. É realmente assustador estar aqui entre os mais inteligentes dos inteligentes. Estou aqui para contar algumas histórias de paixão. Há um antigo ditado judeu que eu amo. O que é mais verdadeiro que a verdade? A resposta: a história. Sou uma contadora de histórias. Quero transmitir algo que é mais verdadeiro que a verdade sobre nossa humanidade. Todas as histórias me interessam e algumas me assombram, até que eu termine de escrevê-las. Alguns temas continuam se repetindo: justiça, lealdade, violência, morte, temas sociais e políticos, liberdade. Estou consciente do mistério que nos rodeia, então eu escrevo sobre coincidências, premonições, emoções, sonhos, a força da natureza, mágica.
Nos últimos 20 anos, eu publiquei alguns livros, mas vivi em anonimato até fevereiro de 2006, quando carreguei a bandeira olímpica nas Olímpiadas de Inverno na Itália. Isso me fez uma celebridade. Agora as pessoas me reconhecem nas lojas da Macy's e meus netos pensam que sou bacana. (Risos) Permitam-me contar sobre meus quatro minutos de fama. Um dos organizadores da cerimônia olímpica, da cerimônia de abertura, me chamou e disse que eu tinha sido selecionada para ser uma das porta-bandeiras. Eu respondi que certamente havia estavam enganados, pois sou tão distante de ser uma atleta quanto possível. Realmente, eu nem sabia se conseguiria dar a volta no estádio sem um andador. (Risos) Disseram-me que isso não era brincadeira. Seria a primeira vez que somente mulheres carregariam a bandeira olímpica. Cinco mulheres, representando cinco continentes, e três medalhistas de ouro olímpico. Minha primeira pergunta foi, naturalmentte, o que devo vestir? (Risos) Um uniforme, ela disse, e pediu minhas medidas. Minhas medidas! Eu me vi em uma parca felpuda, parecendo o boneco da Michelin. (Risos)
Em meados de fevereiro, eu estava em Turim, onde uma multidão entusiasmada aplaudia quando uma das 80 equipes olímpicas passava pela rua. Aqueles atletas tinham sacrificado tudo para competirem naqueles jogos. Todos mereciam vencer, mas há o elemento sorte. Um respingo de neve, um centímetro de gelo, a força do vento, podem determinar o resultado de uma corrida ou um jogo. Entretanto, o que mais importa -- mais que treinamento ou sorte -- é o coração. Somente um coração destemido e determinado conseguirá a medalha de ouro. Tudo diz respeito a paixão. As ruas de Turim estavam repletas de pôsteres vermelhos anunciando o slogan das Olimpíadas:
A paixão mora aqui. Não é sempre verdade? O coração é o que nos motiva e determina nosso destino. Isso é o que preciso para meus personagens em meus livros: um coração apaixonado. Eu preciso de não-conformistas,dissidentes, aventureiros, forasteiros e rebeldes, que questionem, subvertam as regras e assumam riscos. Pessoas como todos vocês nessa sala. Pessoas boazinhas com bom senso não são personagens interessantes. (Risos) Eles só são bons como ex-cônjuges. (Risos) (Aplausos)
No vestuário do estádio, encontrei as outras porta-bandeiras: três atletas e as atrizes Susan Sarandon e Sophia Loren. Também, duas mulheres com corações apaixonados: Wangari Maathai, do Quênia, ganhadora do prêmio Nobel, que plantou 30 milhões de árvores. E devido a disso, ela mudou o solo e o clima em alguns lugares na África, e, é claro, a situação econômica de muitos povoados. E Somaly Mam, uma ativista cambojana que luta apaixonadamente contra a prostituição infantil. Quando ela tinha 14 anos, seu avô a vendeu para um bordel. Ela nos contou sobre garotinhas que era estupradas por homens que acreditavam que transar com uma virgem muito jovem os curaria da AIDS. E de bordéis onde as crianças são forçadas a receber cinco, 15 clientes por dia, e se elas se rebelarem, são torturadas com eletricidade. No vestuário, eu recebi meu uniforme. Não era o tipo de traje que eu normalmente uso, mas estava longe de parecer o boneco da Michelin que eu tinha imaginado. Nada mal, mesmo. Eu parecia uma geladeira. (Risos) Mas todas as outras porta-bandeiras também pareciam, exceto Sophia Loren, o símbolo universal da beleza e paixão. Sophia tem mais de 70 anos e continua linda. Ela é sexy, esbelta, com um lindo bronzeado. Agora, como se pode ter um lindo bronzeado e nenhuma ruga? Eu não sei. Quando a perguntaram em uma entrevista na TV: "Como pode estar tão bem?" Ela respondeu: "Postura. Minhas costas estão sempre retas, e eu não faço barulhos de gente velha." (Risos) Então, aqui vão alguns conselhos de uma das mulheres mais lindas da Terra. Sem grunhidos, sem tosses, sem resfôlegos, sem falar sozinha, sem peidar. (Risos) Bem, ela não disse isso exatamente. (Risos)
Por volta da meia moite, fomos convocadas para uma ala do estádio, e os autofalantes anunciaram a bandeira Olímpica, e a música começou -- a propósíto, a mesma música que inicia aqui, a Marcha de Aida. Sophia Loren estava bem na minha frente -- ela é 30 cm mais alta que eu, sem contar o cabeleira. (Risos) Ela andou elegantemente, como uma girafa na savana africana, segurando a bandeira em seu ombro. Eu corri atrás -- (Risos) -- na ponta dos pés, segurando a bandeira com o braço estendido, para que minha cabeça ficasse bem debaixo da maldita bandeira. (Risos) Todas as câmeras estavam, é claro, na Sophia. Foi bom pra mim, pois na maioria das fotos eu apareço também, embora quase sempre entre as pernas de Sophia. (Risos) Um lugar onde a maioria dos homens gostaria de estar. (Risos) (Aplausos)
Os melhores quatro minutos de toda minha vida foram esses, no estádio olímpico. Meu marido fica ofendido quando eu digo isso -- embora eu tenha lhe explicado que o que fazemos em nossa privacidade normalmente leva menos que quatro minutos -- (Risos) -- então ele não deveria levar para o lado pessoal. Tenho todas as fotos desses magnífícos quatro minutos, porque eu não quero esquecé-los quando a velhice destruir meus neurônios.
Quero carregar eternamente em meu coração a palavra chave das Olimpíadas -- paixão. Assim, aqui vai uma história de paixão. O ano é 1998, o lugar é um campo de concentração para refugiados Tutsi no Congo. A propósito, 80% de todos os refugiados e desabrigados no mundo são mulheres e meninas. Podemos chamar esse lugar no Congo de campo da morte, porque os que não são assassinados, morrerão de doenças ou de fome. Os protagonistas dessa história são uma jovem mulher, Rose Mapendo, e seus filhos. Ela esta grávida e viúva. Os soldados a forçaram a assistir seu marido ser torturado e morto. De alguma forma ela consegue manter suas sete crianças vivas, e alguns meses mais tarde, dá luz a gêmeos prematuros. Dois minúsculos garotinhos. Ela corta o cordão umbilical com um graveto e o amarra com seu próprio cabelo. Ela dá a seus filhos os nomes dos comandantes do campo para ganhar a benção deles e poder alimentá-los com chá preto, já que seu leite não pode sustentá-los. Quando os soldados invadem sua cela para estuprar sua filha mais velha, ela agarra sua filha e se recusa a largá-la, mesmo quando eles apontam uma arma para sua cabeça. Milagrosamente, a família sobrevive por 16 meses, e então, por extraordinária sorte, e o coração apaixonado de um jovem americano, Sasha Chanoff, que consegue colocá-la em um avião de resgate americano, Rose Mapendo e seus nove filhos pousam no Phoenix, Arizona onde agora vivem e prosperam.
Mapendo, em suaíli, significa grande amor. As protagonistas de meus livros são mulheres fortes e apaixonadas como Rose Mapendo. Eu não as invento. Não há necessidade para isso. Eu olho em volta e as vejo em todas as partes. Tenho trabalhado com mulheres e para mulheres toda minha vida. Eu as conheço bem. Nascim em tempos antigos, no fim do mundo, em uma família católica patriarcal e conservadora. Não foi por acaso que aos cinco anos, eu já era uma feminista extremista -- embora o termo não tivesse chegado ao Chile ainda, então ninguém sabia o que havia de errado comigo. (Risos) Descobriria em breve que havia um alto preço a pagar pela minha liberdade e por questionar o patriarcado. Mas eu estava feliz em pagar, porque para cada golpe que recebia, eu dava dois. (Risos) Um vez, quando minha filha Paula tinha 20 anos, ela me disse que feminismo estava fora de moda, que eu deveria seguir em frente. Tivemos uma briga memorável. Feminismo está fora de moda? Sim, para mulheres privilegiadas como minha filha e todas nós aqui hoje, mas não para a maioria de nossas irmãs no resto do mundo que ainda são forçadas a casamentos prematuros, prostituição, trabalho forçado. Elas têm crianças que não querem ou que não podem alimentar. Elas não têm controle sobre seus corpos ou suas vidas. Elas não têm educação ou liberdade. Elas são estupradas, castigadas e, às vezes, mortas impunemente. Para a maioria das mulheres do ocidente, hoje, ser chamada de feminista é um insulto. Feminismo nunca foi sexy, mas asseguro-lhes que nunca deixei de flertar, e raramente sofri de falta de homem. (Risos) O feminismo não está morto, de forma alguma. Evoluiu. E se você não gosta do termo, troque-o, pelo amor de Deus. Chame-o de Afrodite, ou Venus, ou perua, ou o que quiser, o nome não importa, contanto que nós entendamos o que significa e o apoiemos.
E aqui vai outra história de paixão, e esta é triste: o lugar é uma pequena clínica para mulheres em Bangladesh. O ano é 2005. Jenny é uma jovem higienista bucal americana, que foi para a clínica como voluntária durante suas três semanas de férias. Ela está preparada para limpar dentes, mas quando ela chega lá, descobre que não há médicos, não há dentistas e a clínica é somente uma cabana cheia de moscas. Do lado de fora, havia uma fila de mulheres que esperaram várias horas para serem atendidas. A primeira paciente sente dores lancinantes, pois tem alguns molares podres. Jenny percebe que a única solução será remové-los. Ela não tem licença para isso, ela nunca fez isso antes. Ela arrisca muito e está apavorada. Ela nem ao menos tem os instumentos adequados, mas felizmente ela trouxe um pouco de anestésico. Jenny tem um coração valente e apaixonado. Ela murmura uma prece e segue com a operação. No final, a paciente aliviada beija suas mãos. Naquele dia, a higienista arrancou muitos outros dentes. Na manhã seguinte, quando ela chegou à assim chamada clínica, sua primeira paciente estava esperando-a com seu marido. O rosto da mulher parecia uma melancia. Estava tão inchado que não se podia ver seus olhos. O marido, furioso, ameaçou matar a americana. Jenny está aterrorizada com o que tinha feito, mas então o tradutor explica que a condição da paciente não tinha nada a ver com a operação. No dia anterior, seu marido espancou-a por não estar em casa a tempo para preparar seu jantar.
Milhões de mulheres vivem dessa forma hoje. Elas são as mais pobres das pobres. Embora mulheres façam dois-terços do trabalho mundial, elas têm menos que 1% dos ativos mundiais. Elas recebem menos que os homens pelo mesmo trabalho, se ganharem alguma coisa, e elas continuam vulneráveis porque não têm independência financeira, e são constantemente ameaçadas de exploração, violência e abuso. É fato que dar educação e trabalho às mulheres, habilidade de controlar sua própria renda, herança e propriedade, beneficia a sociedade. Se uma mulher tiver o poder, seus filhos e sua família ficarão melhor. Se as famílias prosperarem, o vilarejo prosperará, e, eventualmente, todo o país também.
Wangari Maathai vai a uma vila no Quênia. Ela fala com as mulheres e explica que a terra está estéril porque elas cortaram e venderam as árvores. Ela convence as mulheres a plantar e regar as novas árvores, gota a gota. Depois de cinco ou seis anos, eles têm uma floresta, o solo fica enrriquecido e a vila é salva. As sociedades mais pobres e atrasadas são sempre aquelas que menosprezam suas mulheres. Essa verdade óbvia ainda é ignorada pelo governo e também pela filantropia Para cada dólar dado a um programa direcionado para mulheres, 20 dólares são dados a programas direcionados para homens. Mulheres são 51% da população. Dar-lhes poder mudará tudo -- mais do que tecnologia e design e entretenimento. Eu posso lhes assegurar que mulheres trabalhando juntas – ligadas, informadas e educadas -- podem trazer paz e prosperidade a esse planeta abandonado. Hoje, em qualquer guerra, a maioria das mortes é de civis, principalmente mulheres e crianças. Elas são as que mais sofrem. Homens controlam o mundo, e vejam a bagunça em que vivemos.
Que tipo de mundo nós queremos? Essa é uma questão fundamental. Faz sentido participar da atual ordem mundial? Nós queremos um mundo onde a vida é preservada e a qualidade de vida é acessível a todos, e não somente aos privilegiados. Em janeiro, eu vi uma exibição das pinturas de Fernando Botero na biblioteca de Berkeley, Califórnia. Nenhum museu ou galeria nos Estados Unidos, exceto pela galeria de Nova York, que tem trabalhos de Botero, ousou mostrar as pinturas, pois o tema é a prisão de Abu Ghraib. São pinturas enormes da tortura e abuso de poder, no estilo volumoso de Botero. Ainda não consegui tirar aquelas imagens da minha mente, ou do meu coração. O que eu mais temo é poder com impunidade. Tenho medo do abuso de poder e do poder para abusar. Em nossa raça, os machos alfa definem a realidade, e forçam o resto da matilha a aceitar essa realidade e a seguir suas regras. As regras mudam todo o tempo, mas sempre os beneficiam, e nesse caso, o incentivo fiscal funciona perfeitamente, apesar de não funcionar na economia. Os incentivos servem primeiro aos ricos e depois aos pobres. Mulheres e crianças, especialmente as pobres, são as últimas. Até o mais miserável dos homens tem alguém de quem possa abusar -- uma mulher ou uma criança. Estou de saco cheio do poder que alguns exercem sobre muitos, seja pelo gênero, renda, raça ou classe.
Eu acho que chegou a hora de fazermos mudanças fundamentais em nossa civilização. Mas para a mudança real, precisamos de energia feminina para comandar o mundo. Precisamos de muitas mulheres em posições de poder, e precisamos passar a energia feminina aos homens. Estou falando de homens com mentes jovens, é claro! Velhos não têm esperança, precisamos esperar que eles morram primeiro. (Risos) Sim, eu adoraria ter as longas pernas de Sophia Loren e seios lendários. Mas se pudesse escolher, preferiria o coração de guerreira da Wangari Maathai, Somaly Mam, Jenny e Rose Mapendo. Quero fazer desse mundo um bom lugar. Não melhor, somente bom. Por que não? É possível. Olhe nessa sala -- todo esse conhecimento, energia, talento e tecnologia. Vamos levantar nossos traseiros, arregaçar nossas mangas e trabalhar, APAIXONADAMENTE, para criar um mundo quase perfeito. Muito obrigada.
Coisas Lidas
Apresentou-se com uma carta na mão. O barbeiro Lázaro interrompeu a tesouração e foi á porta. O miúdo estendeu a carta, com a mão esquerda segurando respeitos no braço direito. Era uma missiva triste, com notícias escuras dos lados da guerra. O rapaz que ali se apresentava ficara sem ninguém, a família dele era só pena dos outros.
O barbeiro fingiu demorar-se na leitura. Tinha receio de enfrentar aqueles olhos orfãos, parentes da morte.
- Quem escreveu este bilhete foi meu primo Ezequiel?
O miúdo acenou com a cabeça, dispensando a voz.
- E queres trabalhar aqui comigo, aprender o serviço de barbeiro?
Agora foram os ombros que responderam um encolhimento.
- Como te chamas?
Chamava-se Antoninho. O barbeiro aprontou-lhe na condição. Pequena mas constante. Antoninho trabalharia ali mesmo, ajudante. Dormiria na própria barbearia. Chegada a hora de fechar, retiravam-se as almofadas da cadeira e estendiam-se no chão. Ele deitava naquele sossego frio, até dava jeito para espantar a ladroeira.
O menino foi ficando, vassourando os intervalos da clientela, lustrando o espelho, sacudindo os panos. Nunca de sua língua se confeccionava palavra. Lázaro empurrava-lhe para a vontade, com ordem amiga:
- Está atentinho, veja como eu faço. Um dia desses vais poder cortar o cabelo, tu também.
Mas o miúdo parecia sempre longe, dissidente da infância, olhos exilados na rua por onde a vida se derramava quente e luminosa. Fazia ate medo contemplar aqueles olhos cheios dele. Toda a alma daquele pequeno corpo estava ali naqueles dois luzeiros, pareciam feitos de água incendiada. Antoninho amealhava silêncios, sem que ninguém suspeitasse que sonho brincava dentro dele.
Uma manhã, mais cedo que a hora habituada, Lázaro surpreendeu o miúdo deitado por baixo da cadeira, de alicate na mão.
- Que estas a fazer?
O moço gaguejou: a razão por que alicateava era a cadeira que estava a soltar-se dos parafusos. Um dia desses, o cliente se descompunha, placando contra a vontade. Assim se explicou Antoninho, com a vergonha adoçando-lhe as maneiras da voz.
Lázaro espreitou a obra, abanou a cadeira. A dita estava agora bem fixa. O raio do miúdo até que teve boa iniciativa. Dali em diante, sucederam-se as surpresas mecânicas. As dobradiças da porta foram reparadas, as tesouras afinadas. Antoninho revelava seus dotes de consertador.
- Você bem podia consertar este espelho, adaptar posição dele. Os clientes têm de esticar os pescoços para se verem.
Mas o suporte do espelho era obra demasiada, pedia habilitações superiores. Antoninho pediu tempo para se instruir dos serviços requeridos. Só um tempo que os dias estão cheios de semanas inúteis.
O tio começou a nutrir admiração pelo rapaz. Uma ideia lhe nasceu: o sobrinho merecia um futuro, quem sabe ele não dava um mecânico de primeira. Falou com o Manjate, proprietário da oficina lá do bairro.
Ficou assente. Depois de despegar da barbearia, Antoninho passou a frequentar a oficina, apreciar técnicas e segredos da mecânica. O jovem tinha olhos aprendizes, reparando em tudo com grande velocidade. Cedo se acostumou ás intimidades dos motores, cirurgião dos ferros.
O barbeiro começou a pensar ainda mais alto. A barbearia, com essa coisa da Sida, estava adoecida., aflita de clientes. Talvez nem fosse má ideia aproveitar as tendências do miúdo e abrir ele próprio um negócio de oficina. Uma manhã, a loja repleta, lázaro anunciou bem alto o seu plano. Na cadeira, Serafindo Matine, estudante de economia, esticou bem seu português:
- É um projecto de pequena dimensão, mas se tiver financiamento garantido, meios técnicos, viabilizados, então a reprodução do capital investido...
Levantando a mão, o barbeiro interrompeu os ditos. Nem ele suspeitava que sua simples ideia merecesse tamanha palavreação. E enquanto o futuro economista prosseguia xiricando sabedoria, lazaro chamou o miúdo e lançou-lhe a proposta. Seriam sócios, o dinheiro seria por conta dele, mas as receitas não demorariam. E encheu a língua de promessas. Então?
- Não quero sociedade, tio.
- Não queres?
-é que eu vou voltar na minha terra.
Lázaro estranhou. Mas então ele não via que aqui é que se ganham os tacos, enquanto lá, com essa porcaria dos bandidos, ninguém pára descansado? Mas o miúdo insistia:
- Já decidi, vou voltar. Lá sou muito precisado. Há tanta coisa que é preciso reparar lá, você nem imagina, tio.
No dia seguinte, o miúdo se abraçou á viagem, com um saco cheio de ferramentas compradas de sua economia. O barbeiro deu conta da sua ausência e foi logo á caixa ver se desaparecera dinheiro. A caixa estava intacta, virgem de maldades. Então o barbeiro reparou que um novo suporte, de haste flexível, sustentava o espelho. Sentou-se na cadeira e, horas perdidas, ficou remirando seu rosto, agora mais antigo, mais longínquo, como se houvesse na ausência do sobrinho uma lição que ele lentamente decifrasse.
Coisas Lidas
Caminhava para lá onde o espaço sobrava. Seguia por frios cacimbos. De repente, entre a luz cega de neblina, ele avistou uma roupa. Um casaco de tropa, desses. Camuflado, como lhe chamam. Parou, desconfiado. Era um casaco sossegado na margem do caminho. Verde entre os verdes, quase não se distinguia.
Olhou em volta: só mato quieto, mundo. Passou pelo camuflado, com entrepassos, como se não o visse. Tinha os olhos de esquina, aquilo podia ser ratoeira. Finalmente se deteve, afiando os ouvidos. Voltou para trás, no inverso passo do caranguejo.
O casaco estava preso numa micaia. Ele puxou devagarmente, não queria rasgar. Mas o tecido era consequente, feito para o tempo. Seria de soldado? Ou fora bandido que deixara? Podia ser de cada ambos mas por que se soltara assim de um corpo respectivo, essa era a ruga por sobre os olhos. Ninguém encontra porção de farda assim, avulso nos matos.
Olhou-a: estava inteira, sem mancha. Cheirou: eram só perfumes que o capim transpira. Não havia odor pensante, aquele casaco parecia nem ter tido primeiro homem.
Ia começar a enfiar uma manga mas hesitou. Conservou com o frio do corpo, sentiu a arrepiagem e concluiu se, vestindo. Ali estava ele, agitando os ombros como se houvesse um espelho em frente. Encasacado de militar. As mangas sobravam-lhe. Ficavam as mãos arrumadas a moda de tartaruga.
Viu-se. Ele, agora, parecia um da guerra. E penso não seria que, por confusão da farda, lhe iam disparar? Com certeza, podia ser. No virar de um silencio espingargdando, shu-shututu. Voltou a tirar metade do casaco. Mas parou-se em meio gesto: o frio apertava em volta. E ele sentiu aquele meio abraço quente a roupa, era uma força convidando a entrar no casaco. E revestiu-se.
Fez-se de novo pela distância. Os pés nus, sonolentos, escolhiam sozinhos o caminho. O mato tem medas que só os seus habitantes decifram. De quando e enquanto, ele parava e levava o medo ao pensamento. E se desse encontro com os bandidos? Os perigos do mato ele sabia calcular, os da guerra não.
Num momento, parou, escasso. Parecia ter ouvido o barulho de um som. Estremeceu, com pressa de não estar no mundo. O estrondo que ele ouviu encheu toda a manhã. Já não era barulho de sombra, era luz que arrebentava, mais adiante. Depois, tudo se calou. Parecia que o mato, medroso, se agarrava ao chão. Agora era só silencio, pé ante pé.
Ele ficou á espera de cair, despedido de si. Mas a morte não chegava. Nem sequer a dor que é vizinha da morte. O homem continuava de sangue inteiro. Ao que, por voz do instinto, se resolveu: foi andando para os lados do rio. Por que é que a vida, em aflição, sempre procura a agua?
Chegado á margem, ele se concedeu ao chão. Sentou-se e espreitou o corpo. Não havia nem marcas nem arranhão. Despiu-se para conferir seu estado completo. Quando estava sinceramente nu, ele se confirmou intacto, sem ferida nem risco. Admirou-se. Então porque aquele estampido sacudindo os ares e anexos? Ou será que inventara de ouvir, por excesso de medo? Com certeza, fora. A bala voara só em sonhado pensamento.
Estendeu o casaco para se deitar por cima. Precisava descansar, voltar a residir-se. Mas quando se encostava ao chão viu no camuflado uma pequena mancha vermelha. Pequena, quase ínfima, parecia uma gota de sangue. Aproximou o casaco dos olhos para melhor se concluir. Era sangue recente, ainda molhado de vivo. Assustado, voltou a examinar o corpo. Olhou, palpou: nada, nadissima. De onde saíra aquele sangue, pois então? E, de novo, se demorou a medir a nódoa vermelha no casaco. Aquela mancha crescia, aumentava como se estivesse recebendo de uma fonte rasgada. Primeiro, era um sangue minúsculo. Depois, a gota se foi desembrulhando, multicrescida. Agora, já cobria todas as costas do casaco.
Aflito, segurou a peça de roupa. Pingavam pesadas gotas e na areia se tracejavam. Levantou-se para lavar a farda no rio. Mas então se sentiu fraco, quase vazio. Caiu de joelhos e assim, como se estivesse de rezas, comparou-se com a roupa. O corpo estava todo, junto, sem fresta. Mas a roupa encharcava, até as mangas sanguinavam.
Foi perdendo o gesto. Caiu de boca na terra. A última coisa que sentiu foi como eram iguais seu hálito e o da terra.
Dias depois, lhe encontraram sólido, rasteiro. A gente perguntava-se: morrera como, se seu corpo estava intacto, sem golpe? E, no custo de crer, viram que ao lado se estendia um casaco militar. E lhe tocaram, sentindo que era novo e muito limpo. E que nenhuma mancha havia no camuflado, como se fosse recém-recente., como se nunca tivesse graduado o corpo de ninguém.
Jane Seymour, entrega oscares 2010
( bom exemplo de saber envelhecer)
Coisas Lidas
(...)
A nossa Natália correia, que foi uma lindíssima mulher, mas fisicamente envelheceu mal, confessou-me varias vezes que «na sua carne estava gravada a sua vida». Eu, que era jovem na altura não dava grande valor á filosofia que presidia a esta afirmação, apesar do enorme apreço que tinha pela sua autora. Hoje compreendo-a bem melhor.
É claro que mentiria se negasse que, em dias menos felizes, já me pus á frente do espelho, esticando o rosto, com as mãos, numa tentativa de adivinhar como é que ficaria eliminando as rugas mais visíveis. Ficava melhor, claro. Só que...não ficava eu!
Uma parte significativa de amigas minhas já se operou e, nos tempos que correm, nem sequer fazem disso qualquer segredo. Outra parte, como eu, tem tanto medo da sala de operações que, só de pensar nessa hipótese, se acha de imediato a mais bela das criaturas.
Porém, no meu caso, o problema tem raízes profundas. As nossas rugas contam – e de que forma – uma vida feita de sucessos e fracassos. Poderia mesmo, biografar algumas delas. Porque todas tem uma história. Que vai da cirurgia de um filho, á dor da perda do meu pai ou do sofrimento, com a longa doença da minha mãe. Mas elas são, também, o registo de inúmeras alegrias e de muitas gargalhadas.
Porém, julgo que o facto de valorizar demasiado o que vivi não me permite, de uma penada, ter a capacidade de eliminar tais marcas do meu rosto
Coisas Declamadas
Porque chamamos vivos aos que esperam a vez, marcando passo?
E mortos aos que já se libertaram e são livres no espaço?
Porque julgamos vida o que é efémero e morte o que é eterno?
Porque chamamos céu ao que tememos e ao que amamos inferno?
Porque sorrimos, Deus, se alguém nascendo, desce inconsciente a nós?
E que nos faz chorar se alguém morrendo, sobe consciente a vós?
A vida teme o que chamamos morte e é simples despedida...
(saber, saber, Senhor, que é para a Morte o que chamamos Vida)
Fernanda de Castro
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.