Coisas lidas
Desculpe mas quando você respondeu ao meu anúncio de casamento não esperava que fosse exactamente assim. Não é uma critica, mão me leve a mal, não estou de forma nenhuma a desfazer, o que acontece é que a sua carta chegou e pela letra imaginei coisas, percebe, a gente imagina sempre coisas, a cara, o sorriso, a voz, será alta, será magra, será morena, terá os olhos assim e assado, como será, perdoe o atrevimento, o corpo, claro que ao marcar encontro consigo sabia que não ia dar com uma modelo nem uma artista de cinema, que tinha cinquenta e dois anos, media um metro e sessenta, pesava setenta e dois quilos, trabalhava num banco, se chamava Aldina, gosta de ler, de passear, ir á praia, conviver com gente sã e honesta, que se não fosse assunto serio escusava de lhe telefonar, alias para ser franco a sua resposta foi a única que me entregaram no jornal, até perguntei á empregada quando ela me deu a carta
- É só esta?
E a empregada a medir-me de alto a baixo
- E vai cheio de sorte que se o anúncio tivesse fotografia não havia nenhuma
E eu que me visto decentemente que nem sou defeituoso tirando o problemazinho do pé, a fitar a empregada sem entender e a empregada muito pronta
- Já se viu ao espelho?
Mas mesmo que ela tenha razão não esperava que você fosse exactamente assim.
Não tem nada que ver com a beleza ou a perfeição nos traços ou o modo de arranjar-se ou a gordura, essas coisas são menos importantes para mim do que julga e depois uma senhora forte é agradável, é sinal de saúde, se por acaso eu não for capaz de abrir a lata de conservas com o martelo você vai lá com o dedinho e trucla, não é que faltarem-lhe os dentes á frente me preocupe, é da maneira que se gasta menos em bife e mais em puré de batata e economizam-se uns tostões que o talho anda pela hora da morte, se me permite a sinceridade o que me incomoda é o seu olho esquerdo, quer dizer o direito vê-me, noto que me vê, mas o esquerdo parece amuado comigo, sem me ligar nenhuma, desviado para o canto da pálpebra com ar aborrecido, eu bem me inclino e ele a fugir de mm enquanto o direito me persegue, o que me incomoda é, não saber qual dos dois é o verdadeiro, se o direito apaixonado se o esquerdo, indiferente, se o direito que me observa se o esquerdo que nem a miséria de um solaiozinho me deita, o direito já não tão apaixonado agora nem aborrece como o outro, o direito zangado, o direito furioso, espere aí, esteja quieta, repare que sou coxo e não posso fugir, não agarre assim na carteira enorme e com todo o aspecto de ter um tijolo lá dentro, deixe a carteira em paz, ainda lhe estraga a alça, ainda lhe estraga o fecho, é uma pena estragar uma carteira que custou de certeza um dinheirão, deixe-me ir á casa de banho num instantinho que eu já volto, não me prenda o braço, repare toda a gente aqui no café a observar-nos, repare na expressão do gerente, largue-me, juro que me caso consigo mas larga-me, se você me largar vou direitinho ao supermercado, compro duas latas de Cerelac por causa da sua falta de dentes e começamos já hoje, já agora, já aqui a ser felizes, que bom o seu olho direito outra vez apaixonado, que bom a sua carteira quietinha na mesa, chamo-me Abílio Conceição Pedrosa, trabalho na companhia de gás, muito prazer minha senhora, desculpe não me aperte a mão com tanta energia, não me esmague os ossos, o que eu queria dizer era muito prazer querida, o que eu queria dizer, não me desloque o ombro, era muito prazer amor.