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Coisas Escritas
(…)
- Só espero que estejas distraído. Meus Deus, e não ouças nada do que aqui se vai dizer.
Zé Maria destacou-se do grupo com mais um passo em frente e falou.
- Senhor Padre. Vou começar eu.
O Padre olhou Zé Maria com desdém.
- Eu sabia rapaz, sabia que tu estavas metido nisto. Eu vi-te nascer, Zé Maria. E depois afastou os olhos para um canto da parede onde não havia nada para ver. Mas as orelhas ficaram coladas às palavras do rapaz ruivo.
- Padre, eu sou tão culpado como todos os homens que estão aqui…
O Padre, agarrando ainda mais os olhos á parede, soltou o dedo indicador fazendo sinal de que «ele, não». Ele não era culpado de nada.
-ó Padre, eu não estou a falar de si, você não é homem. Quer dizer, é, mas não é como nós. Não interessa. O que sei é que não são os homens os culpados. A culpa é desta terra, onde só sobrevive quem souber sonhar. Eu queria uma rapariga que me enfeitiçasse mas nestas bandas nem se vêem raparigas vulgares, quanto mais das outras. Vão todas para a cidade atrás de carreiras e dinheiro. Só pensam nisso. Perderam a magia! Eu sentia-me só, sem emprego…foi então que ela me apareceu sem nada…
(…)
O Padre parecia ter picado com o garfo do diabo tão grande foi o salto que o lançou da cadeira.
- Cala-te! Cala-te ou expulso-te desta santa igreja.
A voz do Padre estava cheia de dor. Ele tinha um lugar no coração reservado ao Zé Maria. O rapaz nem adivinhava. Baptizara-o á pressa, pois a mãe pensou que o menino lhe morria no primeiro dia de vida, depois voltou a baptiza-lo para a família fazer a festa, fez-lhe a primeira comunhão, a solene, ensinou-lhe o catecismo e ainda havia de o casar. Mas o rapaz era um dos mais atrevidos da terra. Muita sorte ele tinha em cair na graça de todos com aquela cor de fogo no cabelo. Mas agora estava a passar todos os limites.
Coisas lidas
(...)
Quando levantou o olhar, vinha cheio de força para enfrentar aquela assembleia de homens que ele conhecia tão bem, como as palmas e as costas das mãos. Não era fácil ser-se duro com homens de vidas difíceis.
- Dada a cor das flores, concluo que tenha sido um homem o autor desta graça. Faça o favor de dar o primeiro passo em frente quem caiu na desgraça de fazer esta afronta á Virgem Maria.
Cruzou os braços para que descansassem. Dali a nada um deles teria que suportar a tensão do dedo indicador a apontar se como uma faca ao peito de um daqueles homens.
Mais um burburinho abanou os homens, desta vez, corria com mais força quase um vendaval, levando palavras e olhares cúmplices atrás de si. Tu vais? Então também vou. Ó João, vens ou não? Entreolharam-se assustados. Hesitavam. Quem ia avançar? Uma palavra correu as bocas todas. Todos todos todos. Todos os homens deram um passo em frente. Sim, também lá estava o Presidente, em pé e pela primeira vez de cabeça erguida. Com certeza também não faltavam os velhotes que dormitavam no átrio da igreja.
(…)
Sabe quem não avançou? As duas velhas e o menino. Ele bem queria ir em frente como aqueles grandes homens, mas a velha avó até os olhos da criança fez recuar, ponde-lhes a mão enrugada por cima.
(…)
Interessa agora saber a reacção do Padre (…) quando viu o grupo de homens dar um passo em frente, ainda recuou na esperança de alargar o seu campo de visão. Todos? Sim senhor, todos mais ou menos o Presidente? Mais. As mãos quiseram esconder os olhos mas os olhos queriam ver. O Xavier também? Também. As pernas cambalearam. Aquele era o Titónio?
Coisas lidas
(...)
As palavras, ninguém as agarra, nem mesmo os que as tentam aprisionar no papel, e no entanto elas tem cores. Também tem volume, peso, altura, mas disso não vamos tratar aqui. As que saíram da boca do Presidente, eram azuis celestiais as duas primeiras, cor-de-rosa as duas seguintes e dourada a ultima:
- Rosas vermelhas para ela...tantas!esposta do Padre ao comentário do presidente viria em tonalidades púrpura, raiadas de vermelho cardeal:
- Contei-as! Cem rosas. Cem! É um grande escândalo.
(...)
- Se Ele sabe o que se faz nesta terra á sua Mãe Imaculada ainda nos castiga mais. Para a desgraça ser total já só falta fechar a fábrica das mulheres. Vamos lá ver se resolvemos isto depressinha... o Padre retomou o seu lugar de homem-sol, no centro imaginário da meia-lua feita de homens - homens. Mas não falou logo. Nem logo a seguir. Deixou o silêncio pesar de modo que as palavras quando fossem projectadas, atingissem todos como chumbo. E, lá vieram elas, a tiro de canhão:
- Estamos cá todos, se ainda conto bem, As mulheres graças a Deus que estão ocupadas na fábrica dos tapetes! Mas os homens não falta cá um. Se fosse outro dia eu estaria muito feliz. Mas não estou. Alguém veio por rosas vermelhas á Virgem Maria. Quem o fez, cometeu um grande pecado porque vermelho é a cor da paixão. É fogo. É sangue! Vermelho é desejo carnal. E isso eu não admito que alguém sinta pela Virgem Maria. Ninguém, mas ninguém, pode cultivar tal sentimento.
Um burburinho voltou a correr entre os homens mas o Padre acabou de imediato com ele tossindo silêncios que logo se espalharam por toda a igreja.
Coisas Lidas
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A entrada do grupo foi quase silenciosa mas o Padre, hábil em distinguir ruídos na quietude da sua igreja, voltou imediatamente a cabeça.
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Mas agora a cara do Padre implodia de raiva. Mal ouviu o grupo, o corpo saltou-lhe da cadeira onde estava ajoelhado e ficou de frente para todos eles, alto e severo.
Do seu lugar privilegiado dentro da igreja, observava os homens, um a um. A batina preta embranquecia-lhe ainda mais a pele do rosto.
O grupo avançou em passos abafados pelo tapete azul que levava ao altar. Perceberam logo que eram esperados com ansiedade mas sem grande simpatia. A perto de dois metros do Padre, á distancia que cada homem deve ter do seu próximo para não se picar nem ser picado, todos pararam. Formaram então uma meia-lua em torno do homem-sol, pois não era o Padre quem lhes trazia a luz divina?
Xavier Medina atirou a primeira pergunta:
- Que aconteceu, Sr. Padre?
O Padre mordia o lábio inferior, para conter as palavras. Contudo, o dedo que apontava para o altar atrás de si tremia-lhe tanto que a mão parecia desconcertada, sem saber para onde ir.
Só então viram.
Aos pés da Virgem Maria, que ocupava o nicho central do altar havia imensas jarras cheias de rosas vermelhas. Vermelho vivo como uma labareda.
As velhas benzeram-se. Um burburinho correu como ventania entre todos.
A velha avó abriu a boca e tapou-a com a mão rugosa:
- Rosas vermelhas para a Virgem....ai meu deus, mas quem trouxe isto?!
A outra velha deu logo o seu parecer.
- É pecado! A Virgem está corada de vergonha!
De pálido, o Padre passou a roxo. Já não aguentava mais a indignação que aprisionava na garganta. ia...explodir ergueu o braço direito e agitou-o para o grupo. Era o sinal de avançar com uma carga sobre os infiéis.
- Não sei se a Virgem esta corada de vergonha ou de raiva ao mesmo tempo.
(...)
. A pesada porta da sacristia gemeu longamente. Todas as cabeças s voltaram para ela.
(...)
De fato escuro, o homem de barbas bem tratadas caminhou na direcção do Padre abanando a cabeça para cima e para baixo ia respondendo ao cumprimento que alguns homens lhe dirigiam timidamente. Chamavam-lhe Sr. presidente». Mas assim que viu á sua frente a mancha negra da batina do Padre, pregou os olhos ao chão. Estava perto, muito perto de saber. Sem avançar um centímetro mais, inclinou a cabeça para a orelha esquerda do homem de Deus e sussurrou-lhe nervoso:
- Que se passa ser Padre? Ouvi o sino tocar a rebate...
(...)
Mas o Padre não se fez esperar. Interessado em que todos tomassem conhecimento da tal pouca vergonha que até o sino enervou, esqueceu que uma pergunta a meia voz merece uma resposta no mesmo tom, e gritou a voz e meia:
- Um sacrilégio! Um grande sacrilégio. Encheram o altar da Virgem Maria com rosas vermelhas. Veja com os seus próprios olhos. Veja! Eu já não posso olhar porque ali só vejo Satanás.
Coisas Lidas
CONTO VIRGEM
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Uma badalada, baptizado; duas badaladas, casamento; três badaladas, funeral; quatro badaladas incêndio; cinco? Seis? Sete? Oito? Mas quem está a tocar o sino?! Os dois velhos ergueram a cabeça para a torre, onde o sino bradava aos céus qualquer mensagem que eles não entendiam. Dali, a vista só alcançava a cruz branca, de braços abertos para o azul sem fundo e o sino que ia e vinha a toda a força, fazendo exigências a norte e a sul
As badaladas continuavam a soar ditadoras. O povo ouviu e obedeceu. Ao João e ao Teotónio que pensavam que corriam mas apenas se arrastavam um pouquinho mais depressa que nos outros dias, juntou-se um magote de homens de todas as idades, formas e feitios, mulheres havia duas já muito velhas e enegrecidas pela morte dos familiares. Crianças era só uma, um rapazinho, de mão dada com uma das velhas. Não pense que era a velha que levava o menino, pois não era, não senhor. Era o menino que puxava a velha, convencido de que o esperava festa de doces e balões. Desesperava-se assim com a lentidão da avó.
Não ensinaste as pernas a andar, Vó? Foi esta a única fala que se ouviu até o grupo chegar á porta da igreja. O sino falava mais alto. O badalar nervoso impunha respeito.
(...)
Hoje em dia comungavam falas como dantes, embora houvesse muito mais para dizer. A realidade era dura, de calar a língua, mas as irrealidades que lhe andavam a acontecer davam vontade de a soltar. Sabes, pá, eu vejo uma mulher a dançar no ar... tu também? Tens coragem de dizer com quem ela é parecida? Se calhar estamos todos a ficar loucos. Este desemprego esta a dar-nos a volta ao miolo.
(...)
Depois da grande porta da igreja passaram para o guarda-vento, onde haviam outras duas portas. Uma á direita, igualzinha á esquerda. Outra á esquerda igualzinha á direita.
(...)
E foram entrando para o interior dourado da igreja, uns pela direita, outros pela esquerda, conforme dava mais jeito a cada um. Ajoelhado em frente ao altar, o Padre benzia-se vezes sem conta Xavier Medina, lembrando-se que não se tinha ainda benzido, levou o dedo indicador á testa. Sem pressas, baixou o dedo para o peito e terminou com ele na boca, num beijo que alguém atento poderia chama de sensual. É preciso dizer que outros homens fizeram exactamente o mesmo. Exactamente quer dizer tal e qual. De onde se conclui que os outros homens também beijaram os seus dedos polegares com apurada sensualidade.
(continua)
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