Romantismo tropical contemporâneo, conto por Hugo Gonçalves Parte II
Coisas Lidas
Entrámos no mar, o meu corpo abandonado ao turbilhão das ondas, espuma na cara, uma perna raspando no fundo de areia, o ardor da ferida, a alegria de aparecer na superfície, depois de um mergulho, e olhar a praia - Ipanema, Leblon, morro Dois Irmãos, favela do Vidigal, tudo mais bonito por causa da película de luz, caipirinha, maconha e água salgada. Fiz carreirinhas. Thais pegou jacaré. Podíamos ser felizes na praia, com filhos hippies e dieta de fruta. Sempre fui romântico antes de tempo.(…) Era de noite quando ela me estendeu a mão: "Quer pegar um ônibus?" Foi a primeira vez que nos tocámos. Mais tarde escrevi no bloco como numa biografia: "Urca: onde tudo começou." Acrescentei: "Bom spot para encontros amorosos."(…) Tropecei nas havaianas e espalhei-me no meio da sala. Fred bateu palmas. Thais mandou-me um beijo. Levantei-me e fiz uma vénia. Um homem apaixonado não tem medo do ridículo(…) Porque a minha memória não me permite mais que caras desbotadas, revelo apenas que curti com Thais como um adolescente no sofá com os pais em viagem, que ela foi várias vezes à casa de banho com as amigas, que uma delas entornou um copo na minha braguilha e que acordei a olhar para o Cristo Redentor.
Na janela vi o verde da selva no morro e o sovaco do Senhor Jesus de braços abertos lá em cima. Não estava sozinho. Fred fazia colherzinha comigo. Dei-lhe um tabefe: "Deixa de ser bicha." Fred abriu os olhos desidratados e lamentou o regresso ao mundo dos atormentados pelo calor: "Puta que o pariu." Acendeu um cigarro e "Bora pequeno-almoçar?"(…) Fred disse: "Vamos curar a ressaca." Em menos de cinco minutos estávamos a dar mergulhos. No roteiro da recuperação seguiu-se água de coco e suco de melancia no Polis Sucos. Fred disse: "Vamos tomar um duche, tenho umas amigas que te querem conhecer." Fred, o manipulador: "Pagas o suco que eu vou carregar o telemóvel?"(…) Santa Teresa e samba na Lapa Saímos da praia com as amigas de Fred. Uma paulista advogada, sardenta e feroz tirou-me o telemóvel da mão e gravou o seu número: "Se passar em São Paulo pode ligar." Ela queria saber quem eu era, fez perguntas, encostou-me. Apresentei o show da minha cronologia pessoal(…)Thais estava outra vez aborrecida, mais interessada no iPhone que nas minhas mãos carentes. O namoradinho electrónico deu, por fim, notícias. Ela leu a mensagem e disse: "Tenho uns amigos almoçando no Espírito Santa, é aqui do lado." Fui atrás, esperançoso, palerma, canídeo. Fred ficou no Mineiro com as amigas, olhou para a paulista, para a Thais, avisou: "Estás a apostar no cavalo errado.” Thais passou de menina birrenta a diva adorada assim que entrou na varanda do restaurante.(…) Mas lá estavam as duas amigas de Thais, vigilantes e empenhadas em oferecer abracinhos, mãos dadas, vem cá Thais para te darmos um beijo. Escrevi no bloco: xôxo=estalinho, mulheres bi=gillette, noite louca=balada. Fred apareceu ao fim da tarde com as amigas (a paulista) e anunciou: "Vai rolar balada." Noite dentro pela Lapa: andar na rua com carros da polícia, putas, travestis na esquina sentados num banquinho como os plastificadores de documentos no Rossio, malta sem t-shirt, muita bebedeira, a inevitabilidade de mover o corpo assim que começa o samba num desses bares com sobre- aquecimento, roça roça e música ao vivo. Horas mais tarde, Thais abraçou-me a pedir colo, fraca nos joelhos e com as havaianas na mão: "Quero a minha cama." No táxi dormiu e respirou no meu pescoço. Em casa levei-a para o duche e lavei- -lhe os pés encardidos do samba descalço. Ela disse: "Não vai embora para Portugal amanhã, fica mais um tempo." Sobre o sexo em países tropicais, com ventilador no tecto e humidade nos lençóis, tenho a dizer: todos deveriam experimentar. Entrei em casa e Thais dedilhava o iPhone na sala. Demorou a perceber que estava ali um tipo à espera de qualquer coisa. "Tenho de me arrumar. Brunch com as minhas amigas no Jardim Botânico." O coração vadio parecia um bonequinho de peluche assustado. Ficou ainda mais mariquinhas quando ela avançou para o quarto e, sem olhar para trás, perguntou: "A que hora mesmo é o seu voo? Tem de sair uma hora antes pelo menos por causa do trânsito." Bye bye amor carioca. 20 minutos depois entrei no apartamento do Fred. Não estou aqui para enganar ninguém. Fiquei fodido, melancólico, um soco na barriga, o chão a fugir, vontade de partir para a bebedeira directa e para o flirt dos botecos com transa como bónus track.
Fred, o guru da auto-ajuda, disse: "Conheces a gaja há dois dias e já tens nomes para os filhos? Isto não é uma novela. Era suposto esta viagem fazer-te bem à cabeça. Relaxa e aperta aí um." Enrolei mas não fumei. Continuou: "Man, eu sou um pouco safajeste, mas, foda-se, a malta hoje quer tudo agora, mimados do cacete. Vivem na superfície das redes sociais e porque trocam um vídeo e gostam do mesmo filme já são Romeu e Julieta. Puta que o pariu mais à internet e ao Estado social e ao cabo e aos hiperactivos do sofá e aos sms eróticos. Toda a gente confunde emoções com sentimentos e quer viver com banda-sonora e filhos loiros. Escuta as palavras do mestre Zeca Pagodinho: deixa a vida te levar." Fred, filósofo contemporâneo de pacotilha, fumador de maconha antes do meio--dia, realinhou os genitais nos boxers e expeliu fumo para o tecto: "Vamos para a praia."
Os corações vadios têm um extraordinário poder de recuperação. Liguei à paulista: "Estou a pensar ir a São Paulo uns dias." No bloco de notas escrevi: sempre fui um romântico antes de tempo. Depois sublinhei a frase "Não foi amor. Foi tesão mesmo."