Coisas lidas
Estavas mesmo satisfeito com a tua decisão de alugar um apartamento durante aquelas duas semanas. Parecia-te muito melhor opção do que limitares te a ficar fechado num hotel, sem qualquer contacto com o mundo exterior a não ser os outros assistentes do congresso. E ali estavas tu. Era o teu quinto dia em Veneza e decidiste sair cedo.
Normalmente descias às oito em ponto e cruzavas-te com a porteira, que vinha recolher a correspondência. Era uma mulher gorducha, com uma idade difícil de precisar. Cumprimentava-te cada manhã com um largo e sincero sorriso. Nesse dia chegaste á porta da rua antes dela e deitaste um olhar mecânico á caixa de correio. Não tinhas dado a tua morada a ninguém. E, no entanto, algo te fez pegar no sobrescrito dourado onde estava o teu endereço. Não tinha o nome do destinatário, nem remetente. Apenas aquela morada, escrita á mão numa caligrafia bem desenhada. O envelope não tinha sido selado e não resististes a abri-lo. Lá dentro estava o convite para uma festa. Ouviste os passos da porteira a descer as escadas e meteste-o no bolso mesmo antes do sorriso bonacheirão te saudar. Bom dia, signore. Bom dia, Fiorella, respondeste, tentando não te sentires culpado. A mulher dirigiu-se á caixa do correio e pareceu desiludida por encontrá-la vazia. Já a caminho da primeira conferência, sentado no vaporetto, olhaste com atenção para o convite. Era para o baile de máscaras, e especificava que deverias ir vestido de unicórnio branco. Unicornio branco? repetiste alto, algo incrédulo. Onde é que vou arranjar uma fantasia destas? Encolheste os ombros. Sempre estavas em Veneza, e embora fosse ainda um pouco cedo para o Carnaval, não deveria ter sido difícil. Faltavam apenas dois dias para a festa, mas tiveste tempo de sobra para encontrar o que buscavas. E assim, na data marcada, tentando não te cruzar com a porteira para não teres de dar explicações, lá saíste de casa mascarado, para a noite veneziana.
Enquanto percorrias a pé o caminho que te separava do local do baile, recordas com um certo orgulho o trabalho que tinhas tido para encontrar aquela fantasia. Por fim, num local meio perdido no outro lado da cidade, lá tinhas dado com ela. O dono da loja, um velhinho simpático, tinha posto um ar desconfiado ao ouvir o teu pedido. Mas acabara por ir desenterrar algures aquele fato imaculado que agora envergavas, e mostrara-to com alguma hesitação. Há vários anos que ninguém me pedia este, justificara-se ao entregar-to. Atravessaste a ponte do Rialto e paraste por momentos a contemplar o Grande Canal. Bolas, disseste para ti mesmo, apertado dentro da fantasia, o que eu não dava agora por poder fumar um cigarro. Com um suspiro continuaste, passaste pelo Palazzo Grassi e viraste á direita, tentando não te perder. Era curiosa a sensação que aquela cidade te produzia. Era como se nunca conseguisses fazer duas vezes o mesmo percurso, como se as ruas e os canais mudassem de sítio da noite para o dia. Em Veneza os mapas pareciam-te de muito pouca utilidade. Chegaste por fim ao campo san fantin. O número 1950 era numa casa mesmo ao lado do teatro La fenice. Ergueste os olhos para o belo edifício antes de entrar, um unicórnio branco algo envergonhado, mas de costas direitas e convite em punho. A festa estava no auge. O esplendor dos disfarces era indescritível, e só comparável ao magnífico Palazzo onde o baile decorria. Nunca tinhas visto tal profusão de cristais, candelabros, telas e cortinados de veludo – pelo menos fora de um ecrã. As fantasias iam desde a pastorinha até ao clássico arlequim, mas apenas uma te prendeu a atenção. O outro unicórnio branco destacava-se no meio da multidão colorida. Atravessou o salão e avançou na tua direcção com um passo determinado. Sentiste um arrepio quando a sua voz rouca se fez ouvir. Ainda bem que vieste, disse ela. Sentiste a sua mão fria a agarrar-te, delicada mas firme, e deixaste-te conduzir por entre os pares que dançavam, a s taças de champanhe e os criados fardados a rigor, também eles com caras cobertas por mascaras. Seguiste-a através de salas e corredores, de escadarias
, De escadarias de pedra e painéis deslizantes, dois unicórnios brancos de mãos dadas a atravessarem o imenso edifício, ate pararem por fim no que parecia ser uma biblioteca. Estavas um pouco ofegante, em parte pela correria, mas também pela sensação de seres ali um intruso. A desconhecida com a bela voz rouca pediu então: mostra-me a tua cara. Abanaste a cabeça, apavorado. Ela soltou uma pequena gargalhada. Primeiro eu, então. Os seus braços esguios soergueram devagar a cabeça do unicórnio. Ela sacudiu a cabeça loira e deixou a descoberto um rosto de uma beleza invulgar. Com um sorriso, a mulher sussurrou: agora é a tua vez. Não tiveste forma de recusar. Quando acordaste, ela dormia ainda nos teus braços. Soltaste-te docemente, tentando não a despertar.
Fica, pediu baixinho. Não posso, respondeste. Prometes voltar? Prometo. Ela fechou de novo os olhos. Vestiste o fato branco e saíste sem fazer barulho. A festa decorria ainda, embora tivesse esmorecido um pouco. O dia começava a nascer. Dirigiste-te sem pressa a casa. Deviam ser oito da manhã quando chegaste á Calle dei Cinque. Ao ver-te entrar, Fiorella empalideceu. Onde esteve, signore? Num baile, disseste, encolhido na tua fantasia branca, com a cabeça de unicornio debaixo do braço. A mulher nem pestanejou ao perguntar: num Palazzo ao lado da Fenice? Assentiste com a cabeça, sem ousar olhar para ela. Pareceu-te que abafava algo semelhante a um soluço. Ainda bem que está de volta, limitou-se a dizer. Subiste as escadas devagar, sentindo que o olhar da porteira te acompanhava. Paraste, voltaste para trás. Fiorella, diga-me o que se passa. Com um suspiro, a mulher deixou se cair pesadamente sobre um dos degraus. Sentaste-te ao seu lado. Ele era um homem muito fiel, disse. Tinha tudo para o ser. Esta casa, dinheiro, uma noiva maravilhosa. Ele quem? arriscaste. O senhorio, o dono deste prédio. O que acontecei? Fizeste as malas apressadamente. Faltavam uns dias para terminar o congresso, mas não tinhas qualquer vontade de permanecer em Veneza. Não foi difícil mudares a tua passagem. E depois, ali no aeroporto, diante dos ecrãs luminosos com os anúncios das próximas partidas, enquanto esperavas pela hora do teu voo, tiveste tempo para recordar. A cara dela, o cabelo loiro, o seu corpo nu na penumbra, a fantasia atirada para o chão, a pele dela tão suave, e tiveste vontade de chorar. Porque a essa recordação vinha juntar se outra, a da facada negra da casa ao lado do resplandecente La fenice, quando incrédulo a tinhas tentado voltar a visitar. Os vidros das janelas partidos, o ar de abandono, o telhado desfeito, a fachada carcomida, o que restava do antigo esplendor destruído. Lembraste-te da voz monocórdica de Fiorella a tentar explicar-te o sucedido. Nos anos 90, a grande festa de mascaras a antecipar o carnaval, o incêndio que deflagrara no teatro sem que ninguém estivesse á espera e que se tinha propagado ao edifício contíguo. O teu senhorio que estava a trabalhar fora da cidade e só soubera do sucedido de manhã, que correra para o local para já só encontrar uma máscara de unicórnio queimada. O mesmo senhorio que partira de Veneza e nunca quisera voltar. O convite que todos os anos continuava a chegar, sem que ninguém soubesse como. Os inquilinos que nos anos precedentes o tinham recebido, saído de casa fantasiados e nunca tinham regressado. O terror de Fiorella, que passara a interceptar o envelope dourado antes que mais alguém pudesse desaparecer num baile de mascaras do velho Palazzo. E pareceu te ouvir, ao mesmo tempo que chamavam os passageiros do teu voo para embarcar, as ultimas palavras da velha porteira. Quem sabe, signore. Talvez agora por fim, o outro unicórnio branco possa descansar.