O frio por Luís Januário lido Jornal í
Coisas lidas
Este inverno enfrentámos o frio de peito aberto. Nem lareira, nem aquecimento central. Como vivemos num antigo presbitério, o ar frio da serra entra pelas frinchas e varre os cantos. Da casa. Conheço-lhe as voltas. (…) O sítio mais protegido da casa é a cozinha. O fogão aquece o aposento e podemos comer, beber e conversar até recolher aos quartos. Já não há crianças pequenas. Mas nunca vi crianças a queixarem-se do frio. Como a densidade dos recetores do frio é maior na ponta do nariz, talvez as crianças não sejam especialmente sensíveis.
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Nesses dias o burrinho James tem autorização para entrar e dormir na saleta. O burrinho james é o mais popular dos membros da nossa família. Quando vamos ao mercado da vila ele precede-nos. Como escolhemos sempre o mesmo, as vendedoras preparam os produtos á sua chegada. Só compramos queijo, leite e legumes que não se deem nas hortas dos vizinhos, onde as curgetes crescem particularmente bem.
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Lavamo-nos aos pedaços. Agora acabaram-se os duches.
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O frio é bom, revigorante. O frio faz-nos sentir vivos- dizem os mais velhos.
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O frio para a decomposição dos corpos. Seca as gorduras, limpa o ar das poeiras e dos insetos. O frio é rigoroso. No frio as mulheres são mais altas, mais ásperas e os amantes mais esforçados e inventivos. As crianças crescem nos meses frios, concentram-se melhor, sobretudo longe do mar e das cidades marítimas. O frio repõe a ordem que o verão perturbara, põe fim á estouvada exuberância do verão, apaga os fogos, leva a agua às fontes e gela os lameiros.
O calor acelera a decomposição dos corpos. Os homens andam descalços, calções. Só o frio dá dignidade, gravitas, acutilância. Não há imobilidade com o frio. Aqui todos ajudamos: a dar comida aos animais, durante os cozinhados, a por a mesa, lavar a loiça e arrumar a cozinha, tirar as mantas dos armários. Se algum lê mais alto um excerto de livro fá-lo em movimento, da cozinha para a sala e da sala para a cozinha. E quase todos os acompanham ou, quando são muitos, balanceiam o corpo de um pé para o outro. Esta leitura acompanhada, peripatética, é o nosso maior divertimento, o calor do nosso serão. Descobrimos que em movimento se lê ouve e pensa melhor. É assim que os mais novos preparam os testes, os do meio as intervenções de maior responsabilidade e os mais velhos põem em comum as suas leituras.
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Para mim a discussão acabara antes. Vi o mocho sentar-se na penumbra da sala. Pegar num caderno. E começar a escrever febrilmente. Não lhe distinguira a cara. Só as mãos, o caderno, o tronco. O Mocho tremia. De vez em quando um calafrio percorria-lhe o corpo e dissipava-se nas mãos. Ele parava de escrever até que o tremor o deixasse recomeçar. Aproximei-me, segurei-lhe as mãos geladas. Ele libertou-as para fechar o caderno – o Mocho escreve às escondidas.
- Em que estado estas, Mochinho.- Disse-lhe. – Vai – te deitar.
- É só frio, pai-respondeu – me.