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Arvore De Letras

Coisas lidas,ouvidas,cantadas, declamadas,faladas,escritas

Arvore De Letras

Coisas lidas,ouvidas,cantadas, declamadas,faladas,escritas

23
Fev15

OS CROMOS A MENINA BEM POR RITA FERRO

AnnaTree

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SOIREE II BY KATHRYN MORRIS TROTTER COISAS LIDAS

Foi educada numa ordem religiosa espanhola e aprendeu francês, lavores, Jesus Cristo e Françoise Hardy, tudo de uma assentada. Assinou o «Salut Les Copins» e a «Mademoiselle Age Tendre». Desprezou a Sheila não por cantar pior que as outras, mas por ter o mau costume de mobilar a colcha da cama com ursinhos de pelúcia. Dançou o «Twist», o «Hully-Gully» e o «yé-yé» como ninguém. Dizia seis vezes «que tara» e «a menina p’cebe» por frase. Tinha três festas por sábado, mas entrava á crava sempre que podia: era giro. Pifava os discos nas festas e dinheiro às criadas, e rendeu-se ao Eça por curiosidade sexual. Pelava-se por romances de Max Du Veuzit, e trocava com as amigas fotonovelas «Capricho» e «Grande Hotel» -onde raparigas com olhos sublinhados a lápis e cabelos lisos até á cintura sonhavam casar-se com médicos já casados. Exasperou os professores por devassar a clausura das freiras para roubar hóstias não consagradas, andar de moto de minissaia e roubar churros nas quermesses do colégio. Não era insolente comas as madres, era cruel. Fumou desde os onze anos. Foi expulsa várias vezes. Não acabou os estudos por razões estéticas: achava o pai Mattoso «dramático» e o Lavoisier «possidoníssimo». Estou a falar da típica filha de uma «família boa» dos anos sessenta: católica não por devoção, mas por tradição, e de direita não por razões políticas, mas genéticas. Não tinha romances escaldantes, mas namorados com bom aspecto. Jamais dizia «amo-te»; o máximo que arriscava, em dias de grande tensão sexual, era «o menino não sonha, não acredita, não pode imaginar o que eu gosto de si! “Nunca dava beijos na boca antes do pequeno-almoço, achava «um nojo». No colégio, gozava as colegas que tinham cabelo oxigenado e lingerie de cor (é sabido que as suas vitimas, hoje, estão todas no governo) Ia ao cinema de «Mademoiselle» atrás e só podia sair á noite acompanhada do irmão mais velho- sabe-se que muitos deles debutaram com conceições de bigode e carrapito, e que a maioria penou em prisões portuguesas por tráfico de droga e assaltos á mão armada (sabe-se até que as primeiras violações divulgadas em Portugal não foram na Amadora, mas na quinta da Marinha) Está bem: ra ela que chamava «tia» e «tio» a todos os amigos dos pais, independentemente da consanguinidade; mas primeiro teríamos que carregar em cima do nosso povo que sempre fez o mesmo e num âmbito mais vasto, e também sem precisar de parentescos (exemplos: «ó ti Rosa, ó ti Manel») A menina bem era impagável: não depreciava as pessoas por terem pouco dinheiro, mas por dizerem «mala» em vez de carteira, usarem bikini ou darem dois beijinhos. No colégio vestia farda, mas aos fins de semana também:«kilt» escocês ou calças do «Delfieu», chemiser branco e camisola de lã com tranças, sempre da mesma marca: «John Cage» Como não sofreu na infância, é inofensiva: não é má, nem rancorosa, nem nefasta para ninguém; é só infantil a falar, geba a vestir e rudimentar a pensar. Mas a menina bem é hoje cobiçada por divorciados espertos. É separada, mas óptima madrasta. É pobre, mas aristocrata. É inculta, mas sabe educar um filho. Dá erros de português, mas fala línguas sem assento. Não sabe cozinhar, mas sabe receber. Não sabe fazer contas, mas sabe caber no que tem e governa uma casa como ninguém. E a genuína menina bem muito cuidado com as imitações, uma menina bem não é uma barbie- educada á inglesa catolicamente, não só não usa palitos como não os põe. Na pior das hipóteses, talvez se conclua que o mais grave pecado da menina bem é nunca ter deixado o colégio. E não há dúvida de que lá se safou em termos profissionais: algumas trabalham nas boutiques da Lapa ou nos prontos a vestir das Amoreiras, outras nos gabinetes dos novos gestores e dos novos ministros, a quem a volúpia de terem uma suposta direita a servir-lhes o café e a marcar aviões compensa tudo: até da contradição social em que são, vamos lá, forçados a viver.

13
Fev15

OS CROMOS O MAÇADOR POR RITA FERRO

AnnaTree

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(…) Como bom chato que era, Feliciano tinha a paixão dos hábitos: separava na véspera a roupa que ia vestir, desenhava nas paredes da garagem o perfil das ferramentas, jogava no totobola sempre com a mesma chave, dobrava o lenço em quatro a seguir ao escarro, escrevia para os ministros cartas de sessenta e duas páginas a denunciar cocós de cão, descascava as uvas, conferia as contas dos restaurantes até o convidado desmaiar, obrava a horas certas para educar o intestino e fazia amor às sextas-feiras, de quinze em quinze dias, estivesse quem estivesse em casa.

09
Fev15

OS CROMOS A COLEGA POR RITA FERRO

AnnaTree

COISAS LIDAS

A Maria da Conceição, caramba! Gozava comigo por ser loira e difamava-me dizendo que eu lavava o cabelo com camomila. Eu fazia troça do seu nome e distribuía desenhos nas aulas com ela fardada e de carrapito.

Era um ódio feroz, semeado no campo de basquete e fortalecido no intervalo das onze, no tempo em que as afrontas de escola assumiam a gravidade de crimes.

Um dia, a professora de português pediu-me que conjugasse o futuro perfeito do verbo ser, e eu, que sempre fui despistada, empreguei o condicional e espalhei-me ao comprido. A Conceição enfiou a cabeça dentro da carteira para abafar as gargalhadas e só descansou quando viu a professora arregalar os olhos e toda a aula a explodir de rir. Solucei depois, trancada no quarto de banho, e jurei ao espelho que um dia me vingaria. Cheguei a passar noites em claro suplicando a Lucifer que me inspirasse. Nunca o consegui, porque ela era brilhante a desmoralizar-me; nas aulas de francês ridicularizava-me o meu acento, nas de ginástica abanava o espaldar para me fazer estatelar de borco, e, no laboratório, atirava-me ratos mortos para cima só pelo prazer de me ouvir guinchar. Levantar as saias e mostrar o que não podia. Sofri tanto esta marcação que cheguei a rebaixar-me para lhe pedir tréguas; mas, longe de se apiedar, a Conceição convertia as minhas súplicas em troféus de caça.

Foi assim até ao fim do liceu.

Contava a toda a gente que a minha mãe pintava a boca de encarnado, espalhava boatos de que eu trazia a cabeça infestada de piolhos, e sempre que via um rapaz aproximar-se de mim, antecipava-se: “não andes com ela. Passa o cabelo a ferro e depila-se com Gillette»

Um martírio.

Não havia falha minha que não alardeasse, nem fraqueza de que não se aproveitasse, e, quando não tinha por onde pegar, inventava.

Era impossível vencê-la, porque o seu ódio não conhecia códigos e possuía a mais delirante imaginação para o mal que conheci na minha vida. Com uma adversária deste calibre, não tive outro remédio senão aprimorar a minha conduta e tornar-me inimputável. Resultado: subi as notas nesse período e aquilo que começou por constituir um expediente meramente defensivo acabou, sem querer, por me dar a taça. As professoras citavam-me como exemplo e, rapidamente, passei de pobre diabo gozado nas aulas a aluna com prestígio e duas festas por sábado.

Acreditem ou não, o sucesso que conquistei nessa época, e não voltei a experimentar, devo-o exclusivamente ao ódio militante de Maria da Conceição.

Orgulhosa de mais para desistir, começou a tornar-se patética nas suas infrutíferas tentativas para demolir o meu êxito; e quanto mais se esforçava para me atingir mais aumentava a minha popularidade.

Todo o liceu conhecia a nossa rivalidade e, se antes as minhas colegas se deixavam seduzir pela graça das suas diatribes, passaram, gradualmente, a render-se á tenacidade dos meus métodos e aos méritos da minha vantagem.

Em pouco tempo a situação inverteu-se: eu era uma adolescente inteiramente feliz, com amigas á perna e namorados aos pés, ela, uma gorducha azeda com acne, sobrancelha a unir e sacos do «rei das meias». E no dia histórico em que tive um quinze a português e ela, por sua vez, um seis ou sete, experimentei a glória de a ver escorraçada da aula como um violador de crianças no momento em que eu saia pela mesma porta levantada em ombros por uma multidão de batas em alvoroço.

Pareceu-me o dia mais feliz da minha vida aquele em que a vi desfazer-se em lágrimas, derrotada, agarrada á pasta; mas acabou por não ser. Não me lembro de ter sentido dentro de mim a frescura de uma consolação. Vingada, disse-lhe apenas «Eu serei, tu serias…»

Não voltei a encontra-la, mas soube de fonte segura que triunfou em todas as frentes da vida. Ao contrario de mim que voltei a ser a criatura defeituosa que era antes de a conhecer e que, passados todos estes anos, ainda se engana a conjugar o futuro.

Querida. Saudosa Conceição: devo-te o que ainda hoje respondo quando me apanham em baixo: “Estou a precisar de um bom inimigo»

02
Fev15

OS CROMOS A DOMESTICA POR RITA FERRO

AnnaTree

COISAS LIDAS

OS CROMOS A DOMESTICA POR RITA FERRO

Falo de certa mulher casada que trabalha a tempo inteiro no expediente doméstico, por vocação ou exclusão de partes, limpando a casa e engordando a família.

Essa mesmo: Essa mátria de peito familiar e anca barril forme que vive na cozinha á roda do tacho, lava as paredes com lixivia, pendura a roupa na corda por ordem decrescente, descasca as ervilhas e entala as favas, areja os cobertores á janela, faz croché durante a novela e amor completamente ferrada.

Exactamente: a inimitável patroa portuguesa, crente em Deus e no seu homem, com devoção por Fátima e pelo benfica, que mendiga receituário nos centros de saúde, vai de autocarro ao híper para aproveitar a promoção dos filetes de pescada pescanova, pendura na entrada um azuleijo de boas-vindas para saudar «quem vier por bem» e não hesita em desancar á paulada quem suspeitar que não vem.

Nem mais: essa mãe coragem sem horário, que sabe as carreiras de cor, o autocarro 26 para Sapadores r o 38 para o  Calvário, sofre de varizes e de espondilose, usa corpete de cós alto e combinação á antiga- não vá desmaiar na rua e aparecer ao doutor descomposta-, que se levanta ás cinco e meia da manhã para cozinhar de raiz a jardineira para a marmita  do marido e para o termos do Tolinho Manuel, madrinha e comadre de «uma porção» de gente, que perfuma os prédios com peixe-espada frito á hora do almoço, que diz «prontos», «drogado» , «ouvistes», «destroca o dinheiro» e «controla a rotunda», com família «na» França e aliança encalhada na gordura do anelar bojudo.

(…) Exactamente essa matraca que julga as outras por dá cá aquela palha, como se o sexo fosse «porcarias» e como se a abstenção imposta por um marido capado a brise continuo fosse uma virtude dela. Um marido esmagado por uma bata 46, arregaçada, num quarto com guarda vestidos e psiché, espelho bisculé e edredão nyloso igual ás cortinas, á camilha e á alma, com a Sara Diana Carolina Ágata Romana, carinha mais jóia, a dormir aos pés no sofá cambalhota.

(…)

Alberga a mãe e o pai velhotes, os netos pequenos, os gatos tinhosos e os filhos do irmão «deixado pela mulher, uma rameira», que corta o cabelo curto para não «transpirar», faz permanente uma vez por mês, enfeita as campas com flores de plástico

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