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Coisas lidas
A dois e dois arrastando-me
Nunca nada assim tão forte, como naquela manhã os teus olhos, os teus olhos, como dizer os teus olhos naquela manhã, sob luz de julho, as pupilas abertas, um brilho inexplicável a puxar-me para dentro de ti, como se me engolisses de repente, e eu e as coisas à minha volta suspensas no ar - o cigarro, o fumo que saíra um segundo antes das minhas narinas, a bicicleta amarela veios vermelhos (ferrugem) encostada à parede, a mala de couro, o jornal saindo do bolso esquerdo da gabardina- e depois tudo isso, eu e as coisas à minha volta suspensas no ar, caindo dentro das pupilas abertas dos teus olhos, através do brilho inexplicável dos teus olhos. Não me peças rigor, não me peças nitidez, Não me peças nada. Havia ali perto um jardim, este jardim. Árvores de copa larga, o relvado com cães à solta, um retângulo de areia grossa com escorregas pintados de azul (…) Havia um jardim que era igual a todos os jardins: com os mesmos bancos de madeira, os mesmos velhos imóveis a vislumbrar sítios que já não existem a não ser nas suas vacilantes memórias, as mesmas mães conduzindo os mesmos carrinhos com bebés amorosos lá dentro. Havia um jardim que nós atravessávamos, a tua mão guiando-me, e quando o atravessamos ele encheu-se de sombras, sombras crescendo atrás de nós, de cada um dos nossos passos, como se o mundo não fizesse sentido depois de ti. E não fazia.
O chiar do baloiço mal oleado perseguía-nos como uma ameaça, o jardim cheio de sombras preparava a sua vingança e nós trazíamos atada aos pulsos a inocência, como Adão e Eva expulsos do Éden. A cidade era uma coisa vaga, cheio de esconderijos. Pensões baratas, quartos minúsculos, arrecadações. Nós ficávamos uma noite ou meia hora, acesos e furtivos, perplexos com o milagre de haver dois corpos capazes de se encaixar nos ângulos obscuros das casas.
O tempo estilhaçou-se . Cacos por todo lado. Arestas e golpes.
(…)
Nunca saberemos quando é que o espelho se partiu. Cacos por todo lado.
(...)
Um dia, acordei lúcido. Tu não estavas junto a mim e as coisas tinham a respiração serena da normalidade. À minha volta, a tua ausência ocupava espaço visível. Era um uma concavidade, um vento frio a rasgar o dia com força bruta, uma navalha absurda. As pessoas impunham-me respeito e comiseração, fingindo não reconhecer nos meus gestos os sinais da loucura.
Em suma, desapareceste. E eu não voltei a olhar para outros olhos, neste jardim agora obscenamente iluminado.
José Mário Silva revista DN
José Mário Silva revista DN