Coisas lidas
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Uma noite como tantas outras. Depois das outras, porque outras existiram há uma eternidade, meia dúzia de anos.
Ele chegado de cama alheia para onde tenciona regressar, ela evitando a sua por apenas desejar dormir, embora sono profundo a não visite com frequência. Nem uma palavra na escuridão: de malícia brincalhona para apimentar a parte do amor que dizemos fazer, usando metáfora de construção civil; de raiva dorida, que magoa e por isso traz algum alívio pela certeza de estarem os dois de alma inteira; de solidão partilhada por antigos amantes olhando o teto, os corpos nus de luto pesado pelo espasmo que já não volta .Nem uma palavra.
Ela empresta o corpo, se isso se chama a abrir as coxas para ele entrar e permanecer. A cabeça fugiu e deixou o olhar baço, o coração vestiu armadura tecida em noites de espera e posta à prova por telefonemas anónimos e avisos voluptuosos de amigas e familiares. Assim a tem, vagina áspera e quadris imóveis, nem o prazer reflexo lhe concede.O coração. E ele encarniças -se , na esperança toda macha de a sentir em arco, exigindo promessas, mostrando saudades, reprimindo um gemido que não seja de dor ou fastio.Se a não tiver como poderá engana-la? Ninguém aprecia escapadelas sem ter braços a que voltar e depois…,
Um sabor a injustiça caprichosa de mulher. Os homens são os homens, pousam em flores que não as suas mas delas não trazem o pólen, regressam e imaculados, a alma nem chegou a partir e o corpo teve a delicadeza de passar pelo chuveiro.
(...)
Querida.
E algo irrompe dentro dela, feroz de triste, a noite deixa de ser como as outras, muito menos como as outras de antanho. Vestido roubado com um safanão ao sossego do cabide , nua em direção à porta do quarto, ele surpreso e preso de estupor quando a chave roda na fechadura; Prisioneiro. A vida tem destas ironias, anos atrás libertou- a de marido sufocante com promessas de novo amor para sempre, mais livre e adulto, sem porrada velha e ciúmes alcoólicos. Estranho jogo, dois homens disputando mulher a quem reservavam o mesmo destino, interessará a forma da gaiola que prende o pássaro e lhe estrangula o canto?
Nem palavra de conforto a si própria ou resposta à fúria dele. A sala. A velha telefonia ilude o cansaço, ninguém se lembrou de lhe permitir o descanso, música noite dentro para gente da sua idade, costumava esperá-lo no escuro , ansiosa por acreditar nas suas mentiras. Stop!, in the name of love… Último aviso? Pois bem: recebido e desprezado. Enquanto se dirige ao quarto da miúda vai remoendo preocupação ridícula em momentos de decisões graves, memória do que se orgulhava constantemente fazendo negaças nos últimos anos por força da idade ou tristeza, talvez ambas; quem canta? Diana Ross and the supremes…, Jesus!, Estes programas são cruéis, não se devolve assim a uma pessoa a adolescência traída.
Acorda-a. Vamos, despacha-te. A garota não faz perguntas, conhece as respostas há muito tempo. Ignora os murros na porta e as ameaças apocalípticas para o futuro próximo. Afinal tão parecidos os dois homens da sua não - vida, que remédio se não mudar ela? Sorri à telefonia e o verso traz -lhe o passado, it’s to late to stop now .Ao sair pensa que há muito não escuta Van Morrison.
Estás bem? A filha com enorme bom senso, tenho sono. Um porto de abrigo, mas provisório, definitivamente provisório, encalhou com estrépido nos homens mas não tenciona acabar os seus dias em doca seca de família, navegar é preciso, onde pararão os discos de Chico Buarque? As duas de mãos dadas, vamos dormir aos avós.
Braços e velho quarto de solteira abertos, o inevitável " não me quiseste dar ouvidos…" A miúda dormindo tranquila, deixá-la estar . Ainda não sabe como são ferozes as guerras dos adultos quando termina o combate corpo-a-corpo, tribunais, visitas, insinuações, recados; deixá-la estar. "Não nos quiseste dar ouvidos?" Não é bem uma questão de vontade, alguns alertas apenas se escutam quando são as entranhas a grita-los, associação imediata, Betânia no Coliseu para a semana. Quase envergonhada, parece impossível, tudo o que aí vem e ela a pensar num concerto, mas há quanto tempo não fecha os olhos e aperta a mão de alguém no escuro da plateia? Eles nunca…
Irão as duas. De qualquer modo a adolescência ao virar da esquina, a garota ansiosa por saída noturna que lhe dará estatuto ao espelho e na escola, necessário colecionar recordações para o resto da viagem, não vá a vida tecê-las e recusar -lhe os sonhos… Credo! , pensamento sinistro.
Irão as duas. Juntas. Com açúcar e com afeto.