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Arvore De Letras

Coisas lidas,ouvidas,cantadas, declamadas,faladas,escritas

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23
Jul07

Parte XI Conta corrente de Virgílio Ferreira lido em 1995/96

AnnaTree

Coisas lidas (a duas mãos)

A um olhar fito da distância absoluta, que me julga sem me julgar e é julgamento e acusação com só fixar em mim a dureza e a gravidade e o brilho imóvel do seu fitar-me.
Fui mandado para a vida com este ferrete, como ave que aninhassem e fosse largada em liberdade, mas com o controle fica atrás e a segue até ser morta e ser-lhe vida a anilha. Fui largado para a vida, mas ficou atrás o olhar que me segue e me faz sentir constantemente uma culpa que cometi e não consigo identificar e esclarecer.
(...)
É por isso que nunca estou contente comigo, é por isso que nenhum acto meu eu o julgo com merecimento, mas sinto antes que ele pouco significa em face de não sei quê que me diminui e confrange.
(...)
Toda a vida deste modo se me realiza por metade
(...)
Assim me causa espanto que os outros se estabeleçam á vontade no mundo que é seu e triunfem com o seu triunfo e exerçam a sua importância como se tivessem nascido sem um pecado cometido antes de nascerem. Assim os admiro sem saber ao certo se são inconscientes ou se de facto anilhados na sua pata de gente.
Há muito falta na minha origem, mas é duro que uma vida inteira não baste a redimir. E concentradamente olho os meus pulsos e tornozelos para decifrar as anilhas que aí alguém me pôs e não vejo e de que jamais me conseguirei desembaraçar

------------------------------------------------------------------------------------------------

É a palavra de ordem para o homem de hoje. Destruir. Tudo. Os deuses, as artes, diferenças culturais, ou a só cultura, diferenças sexuais, diferenças literárias ou a só literatura que leva hoje tudo, valores de qualquer espécie, filosofias, o simples pensamento, a simples palavra - tudo alegremente ao caixote. Entretanto, ou por isso, proliferação das gentes com a forma que lhes pertence, devastação da sida, que foi o que de melhor a natureza arranjou para equilibrar a demografia, droga dura para se avançar na vida mais depressa, criminalidade para esse avanço, juventude de esgotos nocturnos, velhos em excesso e que não há maneira de se despacharem e atulham os chamados lares de idosos ou simplesmente os depósitos em que são largados até mudarem de cemitério, politiqueiros que têm a verdade do erro que se segue e o mais e o mais. É tempo de cair um pedregulho como o que acabou com os dinossauros há sessenta milhões de anos e de poder dar-se a hipótese de a vida recomeçar. Até que venha outra vez a destruição e Deus definitivamente se farte do brinquedo. Entretanto vê se vês ainda alguma flor ao natural e demora-te um pouco a admirar-lhe a beleza e estupidez.

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

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