Parte XII Conta corrente de Virgílio Ferreira lido em 1995/96
Coisas lidas
Não, não. A única coisa decente que ainda tens a fazer é morrer. E discretamente, se for possível. Não tem sentido adiares a morte se em vida estás já cheio de cruzes. Erraste todos os cálculos como se os tivesses feito. O calculo de ser sociável. De seres familiar, de teres decidido de tudo na papelada que escreveste que não tem sentido nenhum para ninguém. O calculo de por compreensão
Teres apostado no futuro que existe. O calculo de existires. Agora já só resta fechares a loja e sem ser para balanço que o balanço já está feito! E não podes acusar ninguém de ter corrido mal o negócio. O mal do negócio esteve no negociante. Recolhe-te á humildade de onde nunca devias ter saído. Tentaste erguer a cabeça, mas a tua verdade está na giba que te vai recolhendo. Acreditaste naquilo em que se não pode acreditar porque a verdade de uma coisa está naquilo que a nega, a verdade do dia está na noite que se segue. A verdade é a sensatez e a astúcia e tu insensato e ingénuo. Mas não vale a pena cobriste de opróbrio, porque para isso chegam os outros. Vence a vida com a única vitória que nunca é contestada e é, a derrota. Toda a gente fica satisfeita e tu podes ser gentil ao menos uma vez dando-lhe essa satisfação. Está um dia de céu nublado e dói-te a cabeça a estalar. Se te calasses?
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Pensando bem, vale mais morrer já, morre-se agora muito tarde. Quero dizer, muito depois de ter morrido muita coisa à nossa volta e dentro de nós. A vida humana estendeu-se e o que havia nela encolheu. A vida humana é assim vagarosa, «objectivamente» vagarosa, mas o que acontece dentro dela é rapidíssimo (...) Porque aos vinte e cinco anos, digamos aos trinta, temos o farnel pronto para a viagem. Antigamente dava para a viagem toda, agora temos de nos abastecer outra vez - com quê? Temos a bagagem pronta, o amor, as ideias, o corte das camisas e do cabelo, tudo na mala - como aguentar até aos setenta sem mudar de mala nem de camisas? Mesmo que as camisas sejam novas. Imagina agora tu a usares o coco do teu avô. Vergílio Ferreira, in 'Nítido Nulo'
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Viajar não é realizar o imaginário que nos excita antes da viagem mas sim exterminá-lo. O deslumbramento é do que se imagina e não do que realizou esse imaginar. Nós pensamos numa terra longínqua e confusamente admitimos que essa distância é sensível quando lá estivermos. Ora quando lá estivermos há o real que desmistifica o imaginário, há o lá, como aqui, num sítio limitado por um horizonte totalmente presente e não tocado da ausência que havia na imaginação. Mesmo os seus elementos característicos que tiver, uma vez realizados, perdem a magia na sua realização. Eis porque precisamos às vezes de rever num mapa a sua localização para de algum modo lhe restaurarmos a distãncia. Tudo se solidifica na concretização do real, tudo se desvanece aí da sua figuração. A grande força do real é a do que está para lá dele, porque toda a realidade é redutora. Vergílio Ferreira, in 'Pensar'
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