Na tal noite por Mia Couto
Coisas Lidas
Vinte e cinco, natal. O quissimusse, como se diz aqui. Mariazinha, a porta, espera a anual visita de Sidónio vidas, o episódico esposo. Ei-lo agora, em aparatosa aparição, santificado seja ele e mais a sua vaidosa viatura. Ele nunca tanto chegara. Fazia como a chuva procede com as fontes secas: inundava após ausência.
Mariazinha parece viúva, alinhada com os seus dois filhos, na entrada da porta. Ela contempla o volumoso Sidónio, parecendo uma gelatina a ser deslocada do fundo da taça. Mariazinha atrapalhada, segreda aos miúdos:
- Já sabem: ao sinal combinado, vocês desaparecem das vistas!
Os filhos rabeiam o olho na mãe, irreconhecendo-a: vestido cheiroso, penteado de cabeleireiro, unhas de manicure. E receiam que, uma vez mais, seja mais desencontro que encontro. Havia sido assim desde o princípio: a noite sem núpcias, o esposo cadente, com juramento sem prazo de viabilidade.
Os miúdos já sabiam: o pai trabalhava longe em pais muitíssimo estrangeiro, a distância que só lhe dava conveniência visitar a família na noite de vinte e cinco. Cada ano, o pai chegava com os seus carros sempre novos.
O remoto controlo accionado, num blip blip magico e, da bagageira, como em atrelado de trenó, saltavam os presentes, alegria aos molhos.
Neste natal, mais uma vez, muda o carro e toca mesmo. O pai faz abrir a mala do automóvel e de lá espreitam embrulhos e celofanes. São mais os enfeites que os conteúdos, mas não e assim mesmo a festa: feita de ilusão e brilhos maiores que as substancias? Os miúdos, algazurrando, precipitam-se sobre os presentes. E ali ficam, no quintal, entretidos com as lembranças.
Sidónio da entrada na sala em pose de governante. A esposa segue-o, diminuta, protocolar. O homem engrossa as vistas pela sala. Sobre o armário um improvisado presépio. Só as palhinhas do menino nascente são genuínas. O resto é invenção desenrascada, tampinha de coca-cola, arames e restos de lixos.
O marido senta-se a mesa, refastelado, dono. Vai desapertando a fivela do cinto para, em prevenção, se valer por dois. Mariazinha assoma a porta da rua e com um estalar de dedos, reafirma a ordem: os filhos que se mantenham longe. Aquele momento era exclusivo dos dois, a noite de todas as noites.
- Fritei um peixe, aquele que você morre pela boca
Sidónio estala os dentes na língua e faz passar as espinhas pelos beiços. A esposa comendo de pé, prato no apoio da mão, vai olhando o marido. Resplandecendo no pescoço, o fio de ouro, ambos cada vez mais gordos. O ouro parece autentico. Falsificado é o portador, sem marca de origem, nem garantia de proveniência. Sempre que vem, ele exibe acrescido fios e anéis, ornamentos duradoiros. Parta que Mariazinha não pense que ele foi cavalo e regressa burro.
- Cuidado marido, cuidado a espinha na goela.
- Goela tem o pobre - emenda sidónio
- Gente como eu tem garganta, esta a perceber?
Sidónio vidas arrota a marcar parágrafo na refeição. Mais calado que um deus, distante, confiante. Toca o telemóvel, altissonoro, ele grunhe silabas de nenhum idioma. E desliga como se desligasse não o aparelho, mas o interlocutor.
- Há sobremesa? Um docinho?
-estava com falta de açúcar, mas o vizinho, o Alves...
-pois e, açúcar com gentil cortesia do vizinho Alves. O tom e irónico, magoado, suspeitoso. O vizinho Alves estava se avizinhando de mais?
-Mariazinha, você me esta a ser fiel?
- Eu? Sidónio, eu.
Ela, desencontrada das palavras, derrama-se, chorosa. Podia ele, de humano direito, duvidar?
- Cale- se mulher. Não diga nada
Que aquela comoção lhe aflige a digestão sidónio vê se obedecido. Passa a mão pela barriga, com a mesma ternura com que as grávidas acariciam o vindouro.
- Não quero esse doce.
-mas, sidónio, fiz para si, com tanto carinho----
- Não me apetece, pronto.
Mariazinha recolhe o prato, junto com a lágrima. Na cozinha assoa se, olhando pelo quebrado vidro da janela a luxuosa viatura do marido. Quem vai a guerra da e leva, se diz. Mas ela tinha ido a paz e só tinha levado. Ali estava, o Mercedes, cheio de auto-suficiência. Em vez de inveja, porem, lhe vem um alegre preenchimento. Como se o automóvel fosse propriedade sua e ela, alguma vez, viesse a espampanar suas larguezas nos estofos.
Regressa a sala e matem se encostada ao armário. O móvel abana e tombam os bonequinhos. Cristo desaba do berço. Sidónio, pela primeira vez, concede olhar a esposa. E confirma o ditado: que o homem é tão velho quanto a sua idade e a mulher e tão velha quanto parece. Olha as mãos dela, nota o verniz. Mariazinha esgazeia, as pressas recolhendo aquela vaidade.
- Pintei hoje de manha, pedi a vizinha uma tintinha emprestada.
- Sou capaz de ter que rever essa mesada.
- Ah, a mesada, já a dez meses que você não.
- Tenho prioridades, Mariazinha.
Finda a refeição, descalçados os sapatos, sidónio escomprida se na cadeira e fecha os olhos, todo atento aos seus próprios interiores. Sucede então, o imprevisto. A mulher subitamente dengosa, se debruça sobre ele, aumentando a visão das suas carnes.
- Me esta a apetecer dançar.
- Não quer ligar essa musiquinha, marido?
- Qual musica?
- Essa do seu telemóvel.
Sidónio levanta se, arrastado. Os olhos dela ainda rebrilham esperançosos. Mas não e para ela que ele se ergue. São horas, esta de abalada. A porta ele ainda requer em sussurro:
- Para o ano você volta?
- Não sei, mulher, não sei, você sabe, a coisa não esta fácil...
- Mas você pode trazer os seus outros... Os irmãos dos seus filhos. E pode trazer. Ela também, Eu não me importo, sidónio.
Mas o homem já não esta na conversa. Chama os filhos para a despedida e ruma para o carro. Enquanto ele se espreme para entrar na viatura Mariazinha comenta para os miúdos:
- Aquele e um homem bom que ainda há nesse mundo.
E o mais novo, apertando a mão da mãe:
- O pai e aquele que chamam de pai natal?
Riso triste vai esvanecendo no rosto da mãe, enquanto sidónio desaparece no fundo escuro da estrada. Mãe e filhos ficam contemplando a noite, como que esquecidos que havia casa para entrar. De súbito o mais velho sacode a saia da mãe e aponta:
_ Veja mãe, esta a chegar o vizinho, o Sr. Alves.
Mariazinha apressadamente, compõe o vestido e sorriso e murmura:
- Já sabem meninos: ao sinal combinado, vocês desaparecem das vistas.