O CESTO por Mia couto(o fio das missangas)
coisas lidas
Pela milionésima vez me preparo para ir visitar meu marido ao hospital. Passo uma água pela cara, penteio-me com os dedos, endireito o eterno vestido. Há muito que não me detenho no espelho. Sei que, se me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham. (…) Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou. Diferença esta na marmita que adormecerá, sem préstimo, na sua cabeceira. Antes, ele devorava os meus preparados. A comida era onde eu não me via recusada. (…) O meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida, o riso me entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo á loucura. Desde o mês passado que evito falar. Prefiro o silêncio, que condiz melhor com a minha alma. Mas a não haver conversa nos deu outro laço entre nós. O silêncio abriu um correio entre mim e o moribundo. Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar de abafar o riso. (…) Eu lhe escreveria uma carta, feita só de desabotoada gargalhada, decote descaído, feita de tudo o que ele nunca me autorizou. E nessa carta, ganharia coragem e proclamaria: - Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida. (….) No funeral, o choro será assim, queixo erguido para demorar a lágrima, nariz empinado para não fungar. Dessa feita, marido, não será você, mas serei eu o centro. A sua vida me apagou. A sua morte me fará renascer. Oxalá você morra, sim, e quanto antes. (…) - Seu marido morreu. Foi esta noite. Eu estava preparada, aquilo já tanto acontecera, que nem procurei amparo. Depois de tanta espera, eu já queria que sucedesse. Mas ainda depois de descobrir no espelho essa luz que, toda a vida, se sepultara em mim. Saio do hospital á espera de ser tomada por essa nova mulher que em mim se anunciava. Ao contrário de um alívio, porém me acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar. Em lugar do queixo altivo, do passo estudado, eu me desalinho em pranto. Regresso a casa, passo desgrenhado, em solitário cortejo pela rua fúnebre. Sobre a minha casa de novo se tinha posto o céu, mais vivo que eu. Na sala corrijo o espelho, tapando-o com os lençóis, enquanto vou decepando às tiras o vestido escuro. Amanhã, tenho de me lembrar para não preparar o cesto da vista.