Cão como nós de Manuel Alegre
coisas declamadas
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Nunca fomos capazes de decifrar o mistério. Algumas aproximações, talvez. Mas não mais. Permanecerá sempre o mistério do cão fascinado ou aterrorizado perante Astúrias. De Albéniz. Punha-se o disco e ele ai vinha, estivesse onde estivesse, vinha logo. Ficava como que petrificado, ou hipnotizado, ou marrado, diga-se como se preferir. Mas a partir de certa passagem da música, sempre a mesma, começava a uivar. Era difícil dizer se de alegria ou de dor, euforia ou medo, ou tudo misturado.
- Talvez os seus antepassados tenham sido cães de ciganos e a música lhe desperte essa memória genética, esta a ouvir as guitarras antigas aventurava-se o filho do meio.
- Talvez a música lhe fira os ouvidos e seja para ele uma coisa insuportável – arriscava o mais velho.
Se fosse, ele fugia. Mas não. Ficava ali. A gozar e a sofrer com a musica de Albéniz.
Até que um dia a minha filha disse uma coisa extraordinária.
- O coração da terra, ele está a ouvir o coração da terra.
É possível que sim. Ou o primeiro latido do primeiro homem, o primeiro uivo, o som primordial.