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Arvore De Letras

Coisas lidas,ouvidas,cantadas, declamadas,faladas,escritas

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28
Jan11

O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS Mia Couto o Fio das Missangas

AnnaTree

Coisas Lidas

 

De que vale ter voz

Se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar

Se o que vivo é menos do que sonhei?

(versos do menino que fazia versos)

- Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

- Há antecedentes na família?

- Desculpe, doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.

Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

- São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-esfrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

- O medico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobresselentes, não importava. O que urgia era por cobro aquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o medico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

- Dói te alguma coisa?

- Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já dona serafina aproveitava o momento: está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

- E o que fazes quando te assaltam essas dores?

- O que melhor sei fazer, excelência.

- E o que é?

- É sonhar.

Serafina voltou á carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porque? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar á terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor interrompeu:

- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o medico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana e trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

- Não continuas a escrever?

- Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vidas disse, apontando um novo caderninho quase a meio.

O médico chamou a mãe, á parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

- Não temos dinheiro-fungou a mãe entre soluços.

- Não importa respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhas e tardes ele se senta num recanto do quarto onde esta internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o medico, abreviando silêncios:

- Não pare, meu filho. Continue lendo….

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