Escrito por Pedro Paixão/do livro Do mal o menos/Se o amor for outra coisa/dedico a Amy Winehouse
Coisas. Lidas
Telefonei-te para te dizer que precisava de estar contigo e tu vieste a correr, como um menino. Não devias, mostraste-me outra vez esse estranho poder, o desejo. Não esperei que fosses bonito mas a tua voz por detrás de ti encantava-me. O teu sorriso lembrava por vezes a serenidade de um Buda. E por mais que dissesses a tua dor eu não acreditava eu só sentia a minha a desfazer-me. Servi-me de ti como quem bebe um xarope pela garrafa. Desculpa-me se assim to digo. Ao meu colo tu eras um menino a choramingar por teres partido um brinquedo. Essa mulher por quem sofrias nunca existiu senão como personagem de livro. É assim que o sinto. É assim que mo fizeste sentir e é só isso que importa, é disso que se trata. Alias, era difícil distinguir em ti o que fazia parte deste mundo, do outro onde te protegias, te escondias, te fazias passar por quem não eras. Falo-te com raiva porque já não me serves de remédio e tenho de encontrar outro mais forte e não é fácil.
Sou facilmente magoada. Sou facilmente usada. Deixo-me usar. Contigo ainda foi pior. Porque tudo parecia ser como não era. Para ti eu era material de literatura. Até podia parecer que estávamos bem um para o outro. O teu analista dizia-te que só me podias ajudar, fazer-me bem. O que saberia de mim o teu analista senão o que lhe dizias e desejavas ouvir. Sim, arranjaste todas as desculpas para me teres e me deixares. Para te entreteres, para recomeçares a escrever, para teres a ilusão que fazias alguma coisa dos teus dias. Para saíres da cama a assobiares. Eu servi-te de tudo. Mas sobretudo de desculpa para continuares quando não encontravas vontade ou razão ou motivo que fosse para continuares. Fui a tua desculpa.
Foi então que encontrei aquele pó branco que alivia. Não te culpo disso. Se não fosses tu, serias outro. Sou eu que me faço mal a mim própria e não consigo sair disto. É uma dor muito antiga que volta sempre. É uma dor que só pode ser expulsa por outra maior. Aquele pó branco anestesia. Sei que não tenho perdão. Nem o procuro. Sou responsável por tudo o que me faço. Isto já começou há muito tempo e não parece ter fim e o pó branco ajuda. O pó branco é uma coisa com quem não precisas de falar, que não tens de acariciar, que nada te exige em troca do prazer. É uma coisa que te não pode mentir, uma coisa inerte, fria, morta. É a única coisa que te pode aliviar. Desculpa-me dizer-to. Tu não tens culpa. Foste só um a passar. Doeu como dói sempre. Nada assim de tão particular. És um menino de colo que se cansou e adormeceu. Gosto de pensar assim em ti. Dorme agora.