UM SILENCIO REFULGENTE ANTONIO LOBO ANTUNES
Coisas Lidas
Acho que a coisa mais importante que me aconteceu na vida foi uma viagem de cerca de um mês a Itália, com o meu avô. O meu avô guiava e eu sentado ao lado dele, com um volante de plástico, fingia que guiava também.
(…)
De vez em quando o meu avô fazia-me uma festa no pescoço. É engraçado mas ainda sinto os dedos dele.
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As paixões demoravam a passar nessa época em que tudo era lento. Dias compridíssimos, dentes que demoravam séculos a nascer. O meu padrinho dava-me dinheiro pelos dentes de leite. Se eu fosse jacaré estava rico
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A torre Eiffel parece-me uma coisa por acabar, que julgava só existir dentro de um pisa papeis. Voltava-se ao contrário e um redemoinho de palhetas douradas esvoaçavam ao redor daquilo. Talvez o meu avo tivesse força para voltar a Paris mas por um motivo qualquer que me escapa não o fez, e portanto não houve palhetas douradas nenhumas. Ainda pensei em pedir-lhe. Respeitei o seu desinteresse pelo pisa-papéis e, dececionado, afastei o pescoço quando os dedos vieram. Logo a seguir, claro, arrependi-me. Se calhar o meu avo ia voltar-me, a mim, ao contrário, e eu cercado de palhetas douradas. Voltando a Portugal o oferecia-me ao marido da costureira e teria ficado lindamente em cima do rádio. Como me diziam sempre:
-tão bonito, tão loiro
(…)
E a seguir voltávamos, e a seguir o tal tempo lento pôs-se a andar cada vez mais depressa. Até hoje. Eu fiz dezoito anos e o meu avo morreu. Desde a sua morte não me aconteceu nada de importante. Queria dizer-lhe não tive filhos, avo, tive filhas: juro que não foi por mal. E escrevo, facto que tanto o alarmava chamou me ao escritório, perguntou-me no seu poder de síntese de oficial de cavalaria:
-és invertido, por acaso?
Eu não sabia o que era invertido. Pela sua cara tratava-se de uma palavra horrível e garanti-lhe logo que não. Olhou-me desconfiado, a murmurar, perguntei-lhe
- O que é que disse?
E ele a murmurar
- Nada, pode ir-se embora
Espiei-o da porta: continuava a murmurar. Depois de algumas investigações no dicionário e horas de reflexão atarantada, conclui que invertido tinha que ver com pisa-papéis ao contrário e tudo cheio de palhetas douradas a brilharem. Estou a escrever isto de paris. Da janela vejo a torre Eiffel
A grande invertida
E fechei logo a persiana. Não quero que o meu avo pense mal de mim. Nem me aproximo dela. Fujo, evito-a. Não consinto que me levem lá. Pode ser que desta maneira me perdoe o pecado de escrever. Entretanto, para lhe acalmar as suspeitas, recuso-me a fazer o pino. Aqui estou eu como um fuso, direito, de pés no tapete. Se na televisão um intelectual fala da inversão de valores, desligo logo o aparelho não vá isso pegar-se e eu acabar pisa papéis do marido da costureira