Num fim de tarde de domingo em Ipanema, Millôr Fernandes confessa diante do gravador: “Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja nem pelo marxismo”
Coisas Lidas
- É exagero dizer, para Millôr Fernandes, a vida é uma doença hereditária?
Millôr: “A vida é – mas não para mim. Sou uma pessoa lamentavelmente feliz. Não cobro do passado o fato de não ter nascido príncipe da Inglaterra. Ou mais bonito, mais inteligente e mais capaz do que eu sou.
Sempre tive boa saúde. Sempre tive em torno de mim pessoas me amando, gostando de mim intensamente e me fazendo sentir bastante protegido. É o que interessa, em última análise. Quanto ao resto, sou cético. Ainda assim, todo o meu trabalho, durante minha vida inteira, sempre foi solicitado, o que me dá segurança. Há sempre gente querendo que eu faça mais do que eu faço. Não tenho amargura, portanto.
Não vou cobrar o dinheiro que não tive. Não vou cobrar as viagens que não fiz. Não vou cobrar o curso de linguística em Massachusetts que não pude fazer. Não tive nenhuma formação acadêmica, o que tem um lado negativo e um positivo. Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja – que é uma bitola fundamental – nem pelo marxismo. Para o bem e para o mal, tenho o meu próprio pensamento. Você me dá uma coisa – e eu penso. Sou uma pessoa profundamente interessada em pensar as coisas.
Não sou, definitivamente, paranoico. Não tenho doenças. E sei que, à proporção que a gente vive, a morte se aproxima. Quanto tem dez anos de idade, você é eterno. Com 20 ou 30 anos, também. Mas um momento em que você sabe que não é eterno. Não é um medo. É uma constatação”.
”Torre de marfim – reserva três para mim” – é o que você diz, num Hai Kai. Você admite que vive numa torre de marfim?
Millôr: “Não tenho dúvida! Basta ser branco e de classe média no Brasil para já estar numa posição privilegiada. O que é que eu ganho, meu Deus do céu? Vamos dizer que eu ganhe 50, 100 salários mínimos, o que for. Basta ganhar 50 salários mínimos para ser superprivilegiado. Não tenho do que me queixar. Consegui uma coisa que é absolutamente rara. Digo mais: rara, rara, rara. Nunca tive, a não ser através da violência estatal, uma coisa minha cortada em qualquer órgão de imprensa em que trabalhei.
Brigar com os poderes públicos é sempre algo nobre. O que me deixa humilhado é, por causa de um empreguinho, você aceitar que cortem suas ideias”.
Em que grande causa você acredita ainda hoje?
Millôr: “Estou completamente cético. Vou dizer uma coisa trivial: o mundo tem, hoje, pela primeira vez na história, a capacidade de se Auto exterminar. Acrescento: o que não faria mal à economia do cosmo.
Chegamos aqui e vamos sair sem que ninguém perceba nada. Talvez seja este o próprio processo ecológico. Sem considerar estas causas metafísicas, acho que o ser humano sempre chorou à beira do abismo. Sempre ia acabar, sempre ia morrer, mas vem fazendo progressos sistemáticos através dos tempos. Ainda que não pareça, o ser humano progrediu do lado ético e moral. O que impede hoje a pena de morte não são fatores como “essa medida vai aumentar a credibilidade” ou “vai diminuir”. Não. O melhor ser humano de hoje – que somos nós dois, no caso – não admite moralmente a pena de morte. Ponto”.