A MULHER ÁRVORE
Coisas lidas
A MULHER ÁRVORE
Palmira Sousa foi, durante quase meio século, a fantástica figuração de uma árvore de pé descalço a caminhar no Porto; tronco dobrado sob o molho de carqueja.
«A primeira vez que fui presa por pé descalço, muito chorei. Ia com o molho, não tive tempo de me calçar. Ele veio: «está autuada!» «ó senhor guarda, queira
perdoar-me» não perdoou. Palmira teve que desembolsar vinte e cinco tostões de multa de pé descalço.
(…)
Na lufa-lufa penou Palmira, «enganada aos vinte e sete anos», casada pela igreja já com um filho na barriga, boda de casamento á altura desses tempos: «era Inverno, nem tinha o que comer. Duas velhas deram-me vinte e cinco escudos e fui á rua escura comprar duas postas de bacalhau».
A gravidez cumpriu-a a trabalhar. Assim sete vezes, que sete filhos teve do Albertino, falecido aos trinta anos. «Filhos bébezes», não tendo com quem ficar, levava-os no avental «uma mão a segurar as pontas, outra o molho de carqueja» apesar da idade, Palmira guarda na cabeça memória viva, inapagável dos tempos idos. Um sulco, transversal e fundo, um sulco que lhe marca a abobada craniana, a “calvaria” nesta extensa depressão óssea, dorme a tensão demencial da corda que segurava a frondosa copa sobre o seu frágil tronco, mulher arvore de pé descalço a caminhar no Porto, a caminhar no Porto
Lido no noticias magazine 1 Dez 2002