Cartas perdidas . N. M. 15 janeiro 2006
coisas lidas
Carta a carta, foi -se afundando no imenso mar de vergonha de si próprio. Não se reconhecia hoje no fingidor que transparecia em algumas daquelas muitas frases. Sempre afirmara, com uma petulância que se assemelhava a soberba, que nunca magoaria ninguém. Ali estava um espólio epistolar que desmoronava essa imagem que de si construira .Tudo isto tinha muitos anos. Provinha dos tempos em que se escreviam cartas, em que o amor, o sofrimento, a alegria, exalavam de folhas de papel através de palavras pensadas, porventura choradas. Cartas que sobreviveram ao tempo e que naquele dia, ou em qualquer outro, revelavam o que fora e fizera ,na verdade mais crua e brutal.
Não há tecnologia que consiga este resultado. Hoje a comunicação epistolar é uma relíquia da antiguidade. Não se usa. As pessoas falam-se mas não se escrevem. Quanto muito correspondem-se por SMS e e-mails encriptados, em linguagem de abreviatura. Ninguém aguarda o correio. Não se espera que, além de publicidade e contas traga notícias de alguém distante, novos de amores longínquos, encantamentos feitos com palavras. Não se seduz por carta . Aliás já não se seduz. Não se declara por carta. Aliás já ninguém se declara . Não se passam noites a fio compondo cuidadosamente uma redação na esperança que o destinatário a leia com enlevo e sentimento. Não há tempo pra essas loucuras. Além disso, o messager assegura o resultado imediato. Para quê tanto esforço despendido num romantismo “Fatela"? O amanhã é já hoje e o hoje é agora. Acresce ainda que o ato de escrever prevê conteúdos, vocabulários e fermento de imaginação. Nada disto cresce nas árvores e se apanha nas manhãs de primavera. Pressupõe leitura, alguma concentração e o despertar para a magia da palavra. E essa implica silêncio, isolamento e um pouco de trabalho. Por isso, daqui a 20 anos poderão recordar o passado de forma tão impressiva e autêntica. As memórias dos nossos computadores nunca transformarão significado da palavra escrita pela mão de quem sofre ou de quem ama. Os homens e as mulheres que a escola e a sociedade de hoje aproveitando não terão sentimentos diferentes. Não deixarão de querer agarrar o infinito e de conquistar a felicidade. Mas não viveram a experiência inexcedível de tentar pela palavra tocar a alma ausente, transformando a ausência em presença viva e permanente.