Estilhaços de Júlio Machado Vaz
Coisas lidas
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o pai abomina a cadeira de rodas apesar da fissura óssea e sente-se humilhado pelos negássas da memória. Sobreviver à autonomia física e a uma agilidade mental que sempre constituiu o núcleo do seu amor próprio parece-lhe, creio, obsceno. Estou de acordo.
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aceito-lhe o pudor, o medo de ser recordado em tons baços e não de sorriso aberto , cigarro e humor em riste, discurso florentino , histórias assegurando a lenda familiar. Compreendo- o, também não gostaria de sobreviver a mim próprio.
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A vida em abstrato não existe, “apenas” vidas humanas. E o respeito por essas, por nós, que delas somos garantes e fazedores, quem o deve decidir à revelia da nossa dignidade? Não basta garantir o controlo da dor física que atormenta alguém, muito menos rotular de sintoma psiquiátrico ou cobardia o que flui de lucidez diversa da nossa. Respeitar o outro, alguns dos outros, passa por aceitar que considerem a morte como parte integrante do seu projecto de vida e não a simples linha isoelétrica em visores de máquinas sem vontade própria, mas capazes de impedir o corpo de seguir alma. Esses, com razão ou sem ela aos nossos olhos, podem sentir um dia que chegou a hora de partir, antes de se tornarem caricaturas de quem foram. Discutir se a sociedade os deve ajudar em situação de impotência é seguramente necessário e angustiante, mas soterra-los sob a anátema de não respeitarem a vida que acarretam e construíram é de uma arrogância atroz.