Morreste me. Adaptado do livro de José Luís Peixoto
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no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto Esperava pelo meu pai pela pelo meu irmão, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros.Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos -lhe sempre os olhos na esperança pálida de que , se não a virmos, ela não nos verá.
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No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, mãe. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante . O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco.
(...) aos pés da cama, o meu pai calado, viúvo de tudo. À cabeceira, o meu irmão,eu.
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Pousei te as mãos nos ombros fracos . Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva.
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À hora mandaram-nos sair. Quando saímos , agarrados como náufragos , a luz abundante bebia-nos.
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Se pudesse tinha te protegido. Chamavas-me pelo nome, chamavas-me filha, e ouvir o meu nome na tua voz e ouvir filha no fio cálido da tua voz era uma emoção funda.
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No hospital, na sala de espera estagnada tempo inútil e o meu pai sentado, só, longe da nossa casa dos nossos sítios.
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a afastares-te, pelos corredores carregados de cinzento e acesos de eletricidade baça, a afastares-te ,e a sensação terrível de nunca mais voltares.
Entrei em casa (...) do silêncio, da penumbra, um crescer de espectros, memórias? Não, vultos que se recusavam a ser memórias, ou talvez uma mistura de carne e luz ou sombra. E vi-te pensei te lembrei-te, à mesa, sentada no teu lugar. Ainda sentada no teu lugar, e eu, o meu pai, o meu irmão, sentados também, a rodearmos -te.Iguais ao que éramos.
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Distantes da chuva grossa deste inverno negro, distantes do teu corpo gelado. Lívido na luz trêmula das velas, arranjadinha, vestida com o fato que, em lágrimas fui provar e comprar à pressa. O teu corpo gelado . E a capela dos Carmelitas cheia de gente a abraçar-me, cheia de gente a dizer-me coitadinha e os meus pêsames e sinto muito, cheia de gente a procurar-me e a querer agarrar-me e prender-me e a dizer coitadinha e os meus pêsames e sinto muito. Mãe. Perder-te.
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Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim , solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis, Passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios. E abri a janela. Muito longe do luto do meu sentir, do meu ser, ser mesmo, o sol- pôr a estender-se na aurora breve solene da nossa casa fechada, mãe.
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Mãe. Deixaste te ficar em tudo.
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E Tudo isto é agora pouco pra te conter.
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Sinto tanto a falta das tuas palavras.
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Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Mãe. Tudo o que te sobreviveu me agride. Mãe. Nunca esquecerei.
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Pasto para o que sobra de ti tudo são resquícios do que foste.
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Viajo no escuro que deixaste e chego, chego finalmente a ti. Mãe.
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Inocente indefesa adormecida serena, tu. As ideias, as tuas memórias cobertas por madeira e verniz e um crucifixo. O caixão fechado. A chuva, a noite.
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E o trabalho das tuas mãos lindas, suaves ternas para mim, repousavam uma sobre a outra.
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Só chuva e noite, mãe. Atrás nós, o passado a crescer quilómetro a quilómetro. E tu, já sem passado, perdida nele e a partir dele a seres dor e palavras, chuva e noite. Tu impossivelmente morta. Mãe.Apenas chuva. Apenas noite.
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Tudo se mantém suspenso. Tudo quer e tenta ser igual. Todos parecem acreditar. Sem ti, as pessoas ainda vão para onde iam, ainda seguem as mesmas linhas invisíveis.Mas eu sei, mãe. Perderam-se as leis contigo. Perdeu-se a ordem que trazias.Mãe.
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Há os instantes que vivemos mil vezes juntas e que agora nascem sem nós nos ultrapassam. Ao sol que partilhamos mil vezes juntos e que agora nascem sem nós e nos ultrapassam . Há o sol que partilhámos mil vezes e que agora não te aquece, que agora não me aquece. Mãe. Passo por tudo e tudo me deixa e passa por mim. Caio. Avanço.Regresso.
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Mãe. Contava -te tudo na certeza de não te perder e perdi-te.
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Perdi a minha amiga. Tantas saudades. Mãe amiga.
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Mãe que nunca te vi tão vulnerável, olhar de menina assustada perdida a pedir ajuda. Mãe, minha pequena filha.
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Faltava em nós o que aprendemos de ti, a força. E o quarto ficava com a doença e não a fechava, estendia -a por todo a casa e tudo o que se podia tocar.
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Abri as gavetas da cómoda, procurei-te, abrir as portas do armário. Toquei as roupas que nunca mais vestirás.
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Vesti as tuas roupas. Tenho-as vestidas. Nem largas, nem curtas vesti as tuas roupas e olhei-me no espelho sobre a cómoda . No reflexo encontrei-te, vi-te passar a mão rapidamente pelo cabelo e alisar a roupa no corpo.
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Vim-me igual a ti, nas tuas feições firmes. É -me difícil descrever o teu rosto.
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E ainda recordo os teus braços a puxarem -me de encontro a ti e tu ires e eu a ficar sozinho; a pele das tuas faces, o beijo que dei no teu rosto morto, na tua pele mais lisa do que qualquer pele, mais gelada, e o beijo que não esqueço.
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Procurei-te ainda . Abri a gaveta da mesinha de cabeceira do teu lado da cama. A gaveta cheia de papéis das tuas contas, cheia do que viveste e resiste agora sem vida. Parada no ar, a minha mão dirigiu-se à tua gaveta.
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Parada no ar, a minha mão dirigiu-se à tua gaveta; e, entre faturas, entre somas e multiplicações calculadas com os teus números, descobri um quadrado pequeno de cartolina com um coração redondo de papel de lustro. Abri-o e, com as minhas letras infantis, sobre linhas feitas com uma régua, li: Amo a minha mãe,/ amo a minha mãezinha, /não tenho mais pra te dar,/ dou-te o meu carinho. E chorei.
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Parei. Diante do portão de ferro que se fecha todos os dias a separar-nos, diante dos muros caiados grossos altos, ouvi o toque dos sinos, leve, numa brisa, no silêncio. O cemitério branco , de contornos só negros , só branco. Segurei o portão, frio como todas as coisas que existem e nos separam, de um ferro muito mais forte que a nossa carne esforçada, a nossa carne sem forças para vencer e a lutar sempre. Entrei.
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Atravessei o corredor dos jazigos , de musgo preso ao mármore. Dentro de mim, tu sabes,a dor constante a dor constante.
Tu sabes. A capela à minha frente aproximava -se no vagar lento dos meus passos de procissão. Os Ciprestes falavam lamentos acumulados. E caminhava como se o corpo desistisse de me acompanhar. Sem corpo. Imaterial e com o peso incómodo de mim, acima do chão, cheguei à capela e contornei-a e comecei a ver-te, mãe. Ao longe, o desenho da tua cama de pedra, última, o teu altar singelo. E fui por uma vereda de campas, sempre a olhar-te. A andar sem ver, a seguir uma linha , a ver-te. És brilhante entre os que dormem. Mãe.Eu mais perto de ti, a cada ave negra que planava sobre nós; mais perto de ti, a cada nuvem de encontro ao céu cansado.Cada silêncio no vento. Cheguei onde sei que estás viva. Ficas, ficaste; onde estás, só uma campânula de tempo tempo que não passa, mármore.
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Lembraste de quando te trouxe?, O silêncio, o luto , e eu quis-te levar. O carro parou. Parou a chuva no céu. E eu quis-te levar. Fizeste tanto por mim, fizeste-me, e só pude te levar.
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Descansa, mãe, dorme pequenina, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos no espaço dos meus . Descansa , não vou deixar que te aconteça mal. Não se aflija, mãe. Sou forte nesta terra nos meus pés. Sou capaz e vou trabalhar e vou trazer de novo aqui o mundo que foi nosso. O mesmo, mãe. O mundo solar. Reconhecê-lo-ei, porque não o esqueci. E também o tempo será de novo, e também a vida. Sem ti e sempre contigo.
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Espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Mãe , onde estiveres, dorme agora. Menina. Eras um pouco muito de mim. Descansa, mãe. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste toda em mim. Mãe.Nunca esquecerei.
Texto adaptado do livro” Morreste-me” de José Luís Peixoto