OS CROMOS O GORDO POR RITA FERRO
Redacção: eu gosto muito de gordos porque os gordos me comovem. A sua tristeza é funda e interior. Á superfície, apenas a tentativa pungente de indemnizar os outros pela exposição dos seus corpos infelizes. É verdade: o humor não é neles um talento inato, mas um recurso de compensação explorado com desespero. Um gordo acha-se anormal e é por isso que investe na alegria: para se justificar. E, para se mostrar mais leve do que parece, desafia o ridículo dançando nas festas num processo de autoflagelação descontrolada. Mas a sua euforia é forjada. A nostalgia da silhueta perdida consome-lhes os dias e assombra-lhe a existência. O gordo leva um terço da vida a comer, e outro a lamentar tê-lo feito. A restante fracção passa-a a dormir com os seus fantasmas: a troça dos garotos da rua, o espanto dos outros, o fecho éclair. A melancolia dos gordos agrava-se com o passar dos anos e o sedimentar das calorias. Ao mesmo tempo que ele, gordo, se vai transformando num animal sensual capaz de amar com mais fervor do que qualquer outro ser vivo, o seu desgosto é a sua força. Mesmo assim, não troca a comida por nada nem por ninguém- nem pelo objecto amado seria capaz de renunciar a um sarrabulho. (…) A ideia que o gordo faz do paraíso é a de uma ilha onde é possível comer de tudo conservando um corpo adónico. No entanto, melhor do que ninguém ele sabe que um dia não aguentará o balanço de uma vida repleta de oportunidades perdidas por causa de uma fraqueza histérica. É este encontro marcado que o apavora e mortifica. É, aliás, para o afastar da sua mente doentia que o gordo devora pastéis e enfarda leitões, ao mesmo tempo que lastima a adulteração do seu corpo as vinte e quatro horas do dia: quando se estende na banheira, avança para o mar, entra nas salas, despe a camisa em público. (…) Era capaz de trocar todo o seu dinheiro por uma magreza pálida. E a balança é, simultaneamente, a sua musa e o seu carrasco. Se abate dois quilos, encena na casa de banho bailados de grande riqueza cénica que ninguém, infelizmente, testemunha. É nestas alturas que o contentamento do gordo se transforma em pura poesia. Ou que a sua tristeza nos despedaça o coração. Mas á frente de uma chanfana não hesita em comprometer vida e carreira desbaratando meses e meses de dietas e privações. (…) E quem é o gordo, exactamente? No fundo, no fundo, o gordo é aquele animal que vive em nós e que se diverte a escarnecer da nossa veleidade metafisica.