Revista cais número 131 Novas oportunidades, desconheço autor
Coisas Lidas
Saímos juntas mais cedo. O projeto tinha emperrado e tudo ficara suspenso do correio eletrónico que só chegaria de manhã, bem cedinho. Era escusado ficamos ali a chorar sobre o leites derramados, prazos a queimar e incompetências a que naturalmente somos sempre alheias. Pragmatismo era o que a situação exigia e decidimos ir ver as montras antes de regressar-nos às nossas rotinas familiares. Fomos à zona comercial, ali tão próxima, o nosso quotidiano apertado não permitia incursões recorrentes. Deambulámos com passos erráticos e pouco entusiasmo. Cinema estava fora de questão que já era muito tarde para todas. Formámos um trio triste naquele fim de tarde desprogramado . Conversa mole, volta e meia aflorar o trabalho que não tinha avançado, depois o silêncio… Enfim, o vivo retrato do desânimo. Já nos arrastávamos pelas montras aproveitando para delas fazer espelhos que não devolviam boas notícias. Numa delas, paramos longamente observar. Numa delas parámos longamente a observar. Nenhuma de nós o disse, mas dava uma boa fotografia, sem dúvida nenhuma. Enquadramento perfeito, equilíbrio de luz e cenário de cores suaves, bem coordenadas, bem coordenadas. Demasiado brilho, talvez. É pouco contraste.
A fotografia que revela é a que também esconde. Revela esconde.
Revela uma menina que, do alto dos seus saltos, recebe com um sorriso contornado a lápis e pestaneja rímel, dizendo:
-Em tque posso ajudar?
Esconde a escola de onde fugiu sem o nono ano.
Revela um corpo de mulher menina. Alta, esguia,coxas longas elásticas realçadas pelas calças justas de bom corte.
Esconde o contrato de trabalho - fotogenico- que já foi fantasma, depois ganhou forma de três meses e agora de seis.
Revela uma loja ampla e bem iluminada. Na decoração minimalista sobressaem os produtos expostos: perfumes e cosméticos. Quase poderia dizer-se que a fotografia cheira bem.
Esconde o horário de trabalho, desmedido. Fica sempre desfocado.
Revela as unhas perfeitas numas mãos cuidadas que folheiam uma revista de moda sobre o balcão alto.
Esconde um dossiê onde anda a compilar papéis para entregar noutra escola, parecida à que deixou, onde lhe disseram que assim ficava com o nono ano.
Revela castelos de sofisticadas embalagens, algumas enormes, mas que guardam lá dentro 25 mm de diferenciação social.
Esconde o conteúdo do tal dossiê que reúne a sua já muito variada experiência profissional. Trabalhou em três cadeias de comida formatada, distribuiu publicidade ao domicílio, fez animação de rua num evento da capital e tomou conta de crianças no seu bairro. Fêz 18 anos.
Revela um conjunto harmonioso. É imagem de uma rapariga numa loja de luxo. Bem vestida e penteada, numa atitude muito profissional. Revela isso mesmo, mais nada.
Reflectirá algo mais? No vidro da montra reflectem-se três figuras fé meninas de que raramente gostamos. Uns quilos a mais, uma cintura indistinta, as costas que se curvam sob o peso dos anos, das pressas, das indecisões. Retardamos o passo e miramos mais uma vez a nossa imagem na montra. Encolhemos a barriga, esticamos o pescoço na tentativa de ganhar mais uns centímetros e ainda não gostamos. Uns saltos mais altos ajudavam um pouco, claro. Então porque paramos à porta da perfumaria? A Sapataria faria muito mais sentido. É mesmo ao lado e tem modelos lindíssimos. A menina da perfumaria, em cima dos seus saltos de onze centímetros , parabéns pisar o chão com asas. Continuamos a contempla-la; tão jovem, tão bonita. A perfumaria condiz com ela.
Voltamos ao nosso retrato. Trabalho outra vez, claro. Amanhã será um dia importante para recuperar o atraso de hoje. Ganhamos um fôlego inesperado para fazer o ponto da situação. O relógio chama-nos às obrigações familiares, despedimo-nos num ápice e o trio desfaz-se.
Esconde ainda uma dor que a parte ao meio por causa dos saltos. O cansaço sem nome das horas sem fim. Uma esperança, talvez infundada, em novas oportunidades